A talhe de metonímia não se vai longe

Depois da tentativa gorada de derrubar o regime de 16 de Março de 1974, em que apenas o Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha marcha sobre Lisboa, o então Presidente do Concelho, Marcello Caetano, desloca-se a Alvalade por ocasião de um Sporting-Benfica. Homem acossado, a quem todos os dias chegavam relatórios da PIDE informando-o de que o mal-estar entre os militares com a situação no Ultramar crescia a olhos vistos, vai ali para tomar o pulso à sua popularidade junto dos portugueses. É com evidente alívio e satisfação que escuta uma prolongada salva de palmas. O seu sorriso abre-se como era raro ver-lhe. Está eufórico, triunfal. Julga ter o Bom Povo de Portugal com ele.
Dá-se o golpe de Estado vitorioso a 25 de Abril. Não mais se descobre vivalma entusiástica de Marcello e da Outra Senhora. Diz-se: os mesmos que o haviam ovacionado dias antes são os primeiros a vir para a rua exigir a cabeça de Marcello em salva de argentaria e mão pesada, justiça popular, para todos os esbirros do regime fascista. Conclui-se: esplêndida natureza humana, feita de pusilanimidade e deslealdade. Para acautelar a derme, vira-se a casaca enquanto o diabo esfrega um olho.
Pergunto: será mesmo assim, ou terá sido mesmo assim? Terá sido Caetano unanimemente aclamado em Alvalade, como se se tratasse de um plebiscito à sua governação? Terão sido os portugueses, muitos portugueses, lestos a adaptar-se aos novos tempos, a procurar a crista da onda, o sentido do vento? Como, noutra época, terão os parisienses descido em peso à rua para receber em alas apoteóticas as tropas alemãs que entravam na Cidade-Luz?
Não se trata evidentemente de negar que Caetano foi aplaudido; de desmentir que portugueses se converteram a velocidade supersónica abandonando à sua sorte os que antes admiravam; de controverter que parisienses (não só colaboracionistas) congratularam em 1940 os conquistadores vindos do Reno. Trata-se outrossim de contestar a metonímia descritiva que transforma uns quantos no universo, faz tomar a árvore pela floresta, a nuvem por Juno, e disso tira abusivas ilações fácticas e morais.
Essa operação de comutação não é de resto estranha ao nosso quotidiano. Quando estudantes do ensino superior se manifestam contra a subida das propinas académicas, a metonímia transfigura-os em os estudantes do ensino superior em protesto. Quando portugueses acompanham festivamente o percurso do autocarro que transporta a selecção portuguesa de futebol que vai jogar a final do europeu de futebol, a metonímia transmuda-os em Portugal com a sua selecção. Quando se conhece o desfecho do referendo sobre o aborto, através da metonímia conclui-se que o Povo português se pronunciou contra a modificação da lei em vigor. Quando, como recentemente, se apuram resultados eleitorais que dispersam o voto mas têm a consequência da alteração da cor política do Governo, a metonímia metamorfoseia-os em desejo de mudança do Povo português.
Ainda hoje António Barreto, na sua crónica semanal no Público, cede a esta analítica atávica, com a agravante de lhe conferir legitimidade científica. Discorrendo acerca da falta de eficácia e celeridade da justiça, escreve ele (versão impressa): a opinião pública já percebeu. Em estudo recente […] os lisboetas são claros. Apesar de afirmarem, em maioria e em abstracto, que “confiam na Justiça”, mostram as suas convicções relativamente a aspectos concretos da mesma. 67 por cento, contra 14, entendem que a justiça não funciona bem. 53 por cento, contra 18, afirmam que as instituições judiciárias não são independentes dos interesses políticos, económicos e financeiros […].
É pois necessário dizer que as descrições rendidas à metonímia, ao invés do que crêem, não refutam o revisionismo histórico nem evitam a simplificação das realidades actuais; pelo contrário, adensam-nos. Com efeito, no seu esquema lógico fundamental mobilizam os mesmos (consensuais) dispositivos e categorias de criação de factos e evidências presentes e históricos. Tais interpretações vertem em consequência ciência falsa, inspirada num nomos político-moral. Incapaz de se pensar criticamente a si própria, limita-se a produzir e perpetuar um conhecimento ilusório e mistificador. Bom para o jogo político, no qual sobrevém a regra de fazer valer e acreditar em certas definições da realidade; péssimo para quem quer decifrar com um mínimo possível de miopia os mundos em que vive, incluindo os legados do passado.

Comentários

ABA disse…
É questão de aplicar o Princípio da Proporcionalidade..! :)

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