Contra factos (não) há argumentos?

A recente estreia de um filme centrado na período final da vida de Hitler e correligionários próximos no bunker do Führer em Berlim, que não vi e é até provável que me prive de ver, conjugada com comemorações relativamente recentes – a da libertação russa de Auschwitz-Birkenau – ou perto de acontecerem – o fim da guerra na Europa, o Dia D –, levou-me de volta a um livro publicado em 1989 (1ª edição) intitulado Modernity and the Holocaust.
Nesta opus, o seu autor, Zygmunt Bauman, escrutina conhecidas e acriticamente acolhidas perspectivas que, a partir da transparência (auto-evidência) do horror, encurralam o significado do Holocausto no problema de tentativa de decifração/explicação desse horror. Bauman, sem qualquer estribo de revisão denegatória (muito pelo contrário), distancia-se desse problema, ou melhor: da gramática sincrética do horror, quer adopte o formato da abordagem historicista, a procura das causas – o anti-semitismo europeu difuso, Hitler, o seu carisma e as suas obsessões, a corrupção moral dos seus ideais, etc. – quer revista corte filosófico-conceptual – o Holocausto como singularidade (absoluta), o Fim da História, a Deutschtum, e por aí fora. A tese de Bauman é a de que (mantendo o original em inglês): the Holocaust was an outcome of a unique encounter between factors by themselves quite ordinary and common; and that the possibility of such an encounter could be blamed to a very large extent on the emancipation of the political state, with its monopoly of means of violence and its audacious engineering ambitions, from social control – following the step-by-step dismantling of all non-political power resources and institutions of social self-management.
Não vou aqui reproduzir a extensa e complexa fundamentação que Bauman constrói para alicerçar esta conclusão, que colijo no essencial para abrir o apetite. Apenas aconselho, e aconselho vivamente, a leitura da obra em causa, a quem se interessar por estas matérias, e sirvo-me dela para reparo epistemológico. As descrições factuais, os dados – no caso do III Reich quase sempre acoplados a litanias denunciadoras do mal – são muito mais teóricos do que vulgarmente se admite. O obstáculo não reside contudo aí. Todos os factos apurados supõem esquemas lógicos abstractos e portanto constituem objectivações de teorias explícitas ou implícitas. A questão é que essas teorias, as mais das vezes implícitas, são amiúde más, isto é: enviesadas, míopes, inférteis. A não ser para mascarar a realidade através de lugares-comuns consensuais, particularmente eficazes quando trazem consigo a consistência ilusória do regime lógico do facto versus argumento. Uma tão poderosa quão falsa antinomia.

Comentários

blimunda disse…
bolas, que tu és bom mesmo
Cláudia [ACV] disse…
Individualizamos e estudamos à exaustão acontecimentos como a Shoah ou como a implantação do Nacional-Socialismo. Fazemo-lo, conscimentemente ou não, na esperança de os controlar, na esperança de que não se repitam sob outras formas. E fazêmo-lo ao mesmo tempo que sabemos que estas esperanças foram, até agora,assimptotas em relação à realidade.

Mensagens populares deste blogue

O medo não prevalecerá

A história e a moral

Professor universitário