As palavras e as coisas racistas

Um desafio do Nuno Guerreiro pôs l’affaire juif (mais do que o pogrom de 1506) na agenda de alguma blogosfera. Como nota o Vasco, é um debate que alastra e que já levou inúmeros bloggers à redacção: a Carla, a Zazie, o Miguel, o jpt, o Lutz, a Cláudia, o Rui, o Bruno, o João Miguel, o Luís, outro Luís, a Helena, o Francisco, o André, o Dragão, entre outros.
Começo por dizer que nada tenho de princípio contra a transformação da memória consolidada, oficial, através do alargamento do repertório de factos históricos nominados (no caso, o dito pogrom) e que me deixa entre o atónito e o horrorizado a sanha primária anti-semita que vejo nalguns bloggers – by the way, I’m not jew, I only look intelligent. Sobre o repto do Nuno Guerreiro, não quero tomar posição directamente. Indirectamente, tomei-a logo no texto inaugural do bombyx mori. Indirectamente ainda, gostaria de aconselhar a leitura de um livro de um judeu americano, Norman Finkelstein, cujos pais sobreviveram ao gueto de Varsóvia e aos campos de concentração nazi – toda a restante família foi morta. Chama-se The Holocaust Industry, e está disponível no mercado nacional, publicado pela Antígona, com o título A Indústria do Holocausto. Reflexões sobre a exploração dos judeus. Com estas duas indirecções, mais não pretendo veicular que se trata dos tais casos em que, seja qual for o fio-da-meada que se pretenda puxar, há que evitar encurralá-lo na trincheira, na intimação define-te: estás connosco ou estás contra nós?
Se bem entendo, é também contra essa chanfana intelectual (e ética) que o Lutz se manifesta. É inadmissível (e irritante) que o pensamento, obrigado a comprometer-se com um ponto de vista inequívoco (mas perigosamente tendencioso), se sujeite à disciplina (lógica) de bancada/barricada, disciplina monocêntrica essa ademais hiper-vulnerável à paranóia da razão moral (ainda que a coberto de doutrinas ecuménicas ou de tolerância cívica).
Partilhar a resistência, não significa alinhar em tudo. Creio aliás desalinhar num ponto importante, diria crucial. Quanto aos códigos e ao modo de constituição do racismo. Para aclarar o desacordo prefiro, correndo embora o risco da dispersão (seguramente o de levar o debate para outras bandas), largar l’affaire juif e ir atrás à discussão entre a Helena e o próprio Lutz sobre os limites da liberdade de expressão, suscitada na sequência de um texto do Dragão. Divirjo de ambos, não tanto nos termos da discussão quanto ao seu communis opinio. Um excerto do (primeiro) texto do Lutz em que discorre sobre o léxico e o racismo permite-me salientar o pomo da discórdia. Escrevia o Lutz: A denominação dos judeus como pencudos ou dos membros de etnias africanas como pretos não tem, à partida, nada de racista, e deduzir do facto de que essas expressões são usadas no discurso racista a sua proscrição é um exercício do politicamente correcto, que mostra a sua qualidade lamentável, que é a preguiça intelectual. Não há nada mais nocivo para a inteligência do que o cerceamento da linguagem. Por que torço o nariz a isto e, correlato, me desencontro não só do próprio do Lutz como da Helena? Porque tais palavras não são simplesmente palavras empregues no discurso racista, instrumentalizadas numa percepção específica, numa mundividência explícita condenável. São categorias centrais da gramática racista (não confundir com gramática dos racistas), do idios logo racista que se banalizaram, converteram em sensos comuns, em princípios universais de classificação. São em consequência não o fumo metanarrativo do discurso racista mas o seu fundamento, o seu princípio lógico. Mobilizá-las como se não fossem, ou melhor como se pudessem não ser, simplesmente mobilizá-las portanto, implica entrar no arbitrário cultural racista e cooperar na construção das múltiplas realidades por ele enformadas. A denegação – só seriam na circunstância de ser um racista a recalcitrar – e a denúncia – no seu banimento estaria em causa uma censura à liberdade linguística, de expressão, de pensamento – mesmo que visem situar-se no campo contrário, na prática reforçam a classificação racista (difusa).
Que as palavras não são só palavras e muito menos descritores factuais mostra-o a comparação convocada pela Helena entre dois termos que aparentemente nomeiam/indicam o mesmo: judeus, em português, e jude, em alemão. A uma e outra correspondem constelações semânticas bem diferentes, isto é ordens simbólicas diversas, como evidencia o conjunto de fantasmagorias alemãs institucionalizadas a que o próprio Lutz alude e que em Portugal, em português, pouco ou nenhum sentido fazem fora dos círculos da intelligentsia, isto é não têm realização. Em Portugal, fora desses círculos, de resto o racismo contra o judeu, o anti-semitismo persiste apenas sob a forma de vestígios desindexados – por exemplo, a mãe que se dirige ao filho dizendo: só fazes judiarias; ou um amigo virado para outro: tens alma de judeu, pá. Não é por boas razões, mas é assim.
Que a palavra preto é uma categoria racista particularmente poderosa e esguia cujo significado não é possível modificar a nosso bel-prazer mostra-o o facto de a cútis da pele ser utilizada ainda hoje por populações negras, em especial aquelas que foram sujeitas à escravocracia, como critério interno de grandeza, isto é de diferenciação hierárquica – quanto mais claro maior. Mostra-o também a eufemização americana, ao forjar a identidade afro-americana, tentativa artificial e (por enquanto) mal-sucedida de rechaçar as denotações de inferioridade do preto/negro.
Vale a pena reparar que a própria palavra pencudo procede duma discriminação rácica (não expressamente dirigida ao judeu), embora mais subtil. O pencudo como estereótipo fenotípico não é na base (e na prova) o judeu (como poderia ser?); é o ibérico, o norte-africano, o turco, as gentes das paragens bárbaras, não civilizadas, cuja inferioridade total imediatamente transluz no físico. Não por acaso, no que concerne os judeus a di-visão instaurada pelo pencudo penaliza sobretudo os sefarditas, poupando os ashkenazy, símile caucasianos. Essa divisão aliás valeu a muitos judeus polacos, holandeses, alemães, checos, húngaros, etc., loiros, de olhos claros, tez de pele alva, nívea escapar do despiste inicial, menos burocratizado, do reconhecimento (automático) como judeus e, a uma parte desses, dos campos de extermínio. O pencudo é, bem vistas as coisas, um produto do mesmo esquema cognitivo que produz o preto. Não se trata apenas de questão de homologia estrutural entre as antinomias de valor preto-branco e pencudo-não-pencudo, antinomias que fariam dos nomos de lá a polaridade inferior. Através da gramática de que o pencudo é a expressão metonímica faz-se justamente a diferença semita inscrever na diferença rácica. A raça dos judeus como a raça dos pretos, como ainda a raça dos ciganos, as três dotadas de uma inferioridade biológica, perante a raça (ariana – outra ficção, mas ficção eficaz) dos brancos. O pencudo, como o preto, é pois uma categoria directamente implicada no espaço (imperceptivelmente racista) de fragmentação das raças, isto é do valor diferencial das raças.
O meu argumento de fundo, note-se, é que todas as categorias, particularmente as que estão na origem da construção dos grupos – nacionais, religiosos, políticos, desportivos, etc. – tendem a ser radicalmente racistas, no sentido lato em que clivam grandes e pequenos, superiores e inferiores, mesmo quando não alavancam discursos de afirmação expressa, categórica de superioridade ou inferiorização (propriamente rácica e outra).
As categorias e os grupos delas emergentes estão sempre em relação com outras categorias e grupos, relação essa que constitui a base da flutuação histórica do respectivo capital simbólico. Por exemplo, se o homem não existe sem a mulher, e vice-versa; o mesmo é dizer que homem e mulher não são significantes à margem da relação (lógica) que os determina, não é menos verdade que essa relação não é só de distinção, diferenciação, oposição, mas também de hierarquização, hierarquia que pouco depende da misoginia masculina, que é da relação como poder assimétrico entre homem e mulher apenas afloramento grotesco. Pense-se no sexo (heterossexual). O homem, mesmo o que jura a igualdade entre os sexos, penetra, come, fode, possui; a mulher, mesmo a acérrima feminista, é (e quer ser) penetrada, deixa-se comer, foder, possuir. Por outras palavras, o vocabulário normal do sexo tal como ele é normalmente praticado declina o ascendente masculino, observado tanto na libido masculina (libido de posse) como na feminina (libido de submissão). Ser homem e ser mulher implica portanto estar numa relação de dominação e ambos performatizam uma modalidade de racismo androcêntrico crucial para a reprodução da dominação masculina.
É isto tudo que as palavras fazem, nomeadamente quando, enquanto categorias, classes lógicas, taxinomias relacionais portanto, indicam seres (branco, preto, homem, mulher, mas também inteligente, estúpido, alto, baixo, etc.). A pretexto de o fazerem, impõem ao pensamento uma ordem cognitiva afim de certas relações de dominação, que são tanto mais eficazes quanto mais exprimem a própria ordem do mundo, isto é: o círculo se fecha e a palavra enquanto estrutura de significação que acomoda relações de dominação se institui em coisa real.
Essa é aliás a razão pela qual a taxinomia hebraica que classifica os não-judeus de goyim (גוים), se bem que dentro do grupo possa funcionar (e funcione de facto) como princípio racista – na acepção lata do termo de clivar grandes e pequenos, superiores e inferiores – não tem o mesmo poder de revelação de seres autênticos, verdadeiros. Falta-lhe correspondência com a realidade, a realidade que as palavras produzem evocando-a, uma vez que constitui seres lógicos que são desmistificáveis enquanto criação/invenção de um ponto de vista particular.
Procurei mostrar que o pecado mortal da Helena e do Lutz está em discutir a questão do racismo como se tudo fosse da ordem das conotações que as palavras do racismo podem revestir e dos discursos que as podem incluir, ignorando que essas palavras constituem ao mesmo tempo categorias de entendimento e recursos de produção de grupos que, embora não sejam imediatamente apreensíveis enquanto tal, são elas mesmas convenções arbitrárias racistas. Depreender-se-á daqui o interdito de com elas e sobre elas falar, comunicar, discutir? Nem pensar. Era só o que faltava. Impõe apenas uma condição. Que não nos deixemos enredar, confundir, adestrar por elas; que não sejam elas a amestrar o nosso pensamento, a armadilhá-lo com as suas regras sintácticas que eliminam toda a dúvida e amaciam toda a contradição. No limite, de que contradição falo? A de que não há mundo de sentido, de significado categorial que não seja também mundo de poder e relações de força. Mesmo quando o procuramos desmontar. Mesmo que queiramos definir uma carta de princípios de humanidade comum que se sobreponha a tudo o mais.

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