A estatização de La Galère [i]

Dissipada a espuma dos dias, volto brevemente aos acontecimentos dos banlieues de Paris que tanta tinta fizeram correr. Faço-o não para explicar/decifrar directamente os tumultos, o excesso juvenil, aparentemente gratuito, sem objecto, sem desígnio, mas para considerar e aclarar alguns dos processos sociais que sobre a violência praticada e não menos importante classificada cursaram e continuam a cursar.
Ponto de partida. O outro das bernardas dos subúrbios de Paris [ii] (alastradas aos arredores de algumas outras cidades da Europa Central) não é bem um outro. Antes uma condição de acção criada no interior da sociedade francesa. Indícios disso mesmo? Pelo menos três.
a) nos (poucos) testemunhos (a que tivemos acesso) dos jovens ditos vândalos dos subúrbios problemáticos, das cités guetizadas, não se observou o mínimo afloramento de contra-valores ou contra-representações (ou valores e representações irreconhecíveis) – bastará destacar o sentido de justiça tipicamente republicano desses jovens, denunciando o Ministro do Interior Sarkozy justamente por não cumprir as obrigações igualitárias e fraternais do procurador do Soberano.
b) na apresentação que produziram de si próprios, convocaram a pauta francocêntrica do arabe ou do maghrébin como argamassa do nós, do grupo.
c) não são imigrantes, muitas vezes nem sequer os filhos destes, os actores da destruição de património público e privado e ataques à polícia, a de choque e a outra – facto que se tende a esquecer na reprodução mecânica da malaise des banlieues.
Daqui extraio duas ideias centrais. Afloro a primeira; desenvolvo um pouco mais a segunda.
1. Recusar o problema da integração.
A questão de fundo não é de não integração na sociedade francesa. Até certo ponto parte da questão é exactamente a inversa: de integração numa sociedade, como ordem sócio-simbólica, que, na sua constituição, no seu funcionamento, nas suas dinâmicas, é intrinsecamente contraditória. Por um lado, suscita e estimula, dir-se-á: impõe o desejo e a aspiração universal, isto é de todos ao consumo de todo o género de bens materiais e simbólicos, à cabeça os signos de poder e prestígio (regime de desejo e aspiração que, no caso das comunidades magrebinas – o mexilhão da história –, a verdadeira geração de imigrantes, menos integrada, não partilha). Por outro lado, reserva a uns quantos, poucos, a posse e/ou usufruto legítimo desses mesmos bens.
2. Convocar a questão da construção simbólica e política do outro.
Falar de choque de culturas, de valores, conflito civilizacional [iii], como se, parafraseando Eça a propósito dos ingleses, os magrebinos nunca se desarabenizassem, até ver não faz qualquer sentido (no final perceber-se-á esta formulação aparentemente contraditória). O outro da questão é um grupo francês em formação, produto de um complexo, histórico, colectivo trabalho simbólico e político de reagrupamento, inclusão, exclusão, definição, delimitação, reconhecimento e institucionalização no decorrer do qual vai sendo dotado de uma homogeneidade e coesão relativa.
A confessa desorientação das autoridades políticas com a falta de interlocutores do lado dos jovens magrebinos em fúria vândala durante as longas noites quentes, constitui um bom ponto de partida para perceber a complexa construção em causa. Dizia-se: não têm porta-vozes com os quais seja possível dialogar, negociar. À crise da desordem pública juntava-se a crise da representação dos desordeiros. Sem dissolver esta não era possível accionar as tecnologias sociais e políticas que permitem mitigar os litígios quotidianos a partir da sua inserção na ordem da acção/reivindicação colectiva e dos conflitos de grupo/categoria.
Tais porta-vozes nunca chegaram a ser encontrados, mas foram rapidamente substituídos quer por representantes mais idosos da comunidade quer por intérpretes legítimos (designadamente, peritos das questões sociais) da orgiástica destrutiva dos jovens. Uns e outros vieram explicitar (e explicar) a tipicidade específica da vida dos jovens e, não menos importante, escudá-los num regime de justificação (re)conhecido. Com efeito, envolveram-nos numa causa a partir da denúncia de uma injustiça gritante – as formas mais ou menos ocultas de xenofobia, amiúde racista, a que estão sujeitos – que se exerce não só sobre os próprios jovens como sobre toda a comunidade imaginada a que eles pertencem. Em síntese, a caracterização fornecida foi/tem sido a seguinte: são de origem magrebina, muçulmanos (frequentemente desinteressados do culto e do Corão), predestinados ao inêxito escolar e ao desemprego e a continuar nas fileiras do subproletariado miserável, desintegrados, excluídos, relegados para as margens da sociedade, sofrendo na invisibilidade, vivendo existências contrastantes ou dúplices – obedientes, afectuosos e solícitos em casa, perante a família; arruaceiros e delinquentes impiedosos na rua, perante o gang; discriminados pela tez e pela pronúncia; desesperados, ressentidos, etc.
Nos sucessivos ensaios compreensivos que representantes e intérpretes foram compondo, toda a polimorfia, toda a heterogeneidade foi apagada em benefício de equivalências e similitudes entre pessoas através dos interesses, problemas e inclinações comportamentais que partilham. Problemas, interesses e inclinações esses que duplamente caracterizam o grupo: porque os seus membros os experimentam; porque em nenhum outro grupo, mormente o simétrico – o grupo dos nativos franceses – são conhecidos (pelo menos de modo tão brutal e crónico). Estava assim plenamente restaurada a urdidura lógica (cognitiva) do grupo, uno, homogéneo, como forma de classificação (mental) pré-estabelecida. Tudo fazia de novo bastante sentido político – porque justamente é nessa pauta de metonímia representacional que concorda a doxa política.
Não sugiro – é bom acautelar – que o grupo em causa foi inventado na hora, efeito instantâneo de um conjunto de episódios de perturbação aguda da ordem pública. O trabalho político de reagrupamento, sob diferentes modalidades, vinha muito de trás (cito apenas a aglomeração habitacional nas cités e a interdição do uso do véu islâmico na escola pública). Como também não pretendo afirmar que se tratou de uma mera nativização do estranho, do outro, do imigrante, do árabe, do magrebino. Como ainda não quero dizer que seja tudo fabricação, mistificação política e institucional sem qualquer fundo de verdade [iv]. O que digo, o que me limito a dizer é que o momento de crise, ao suscitar uma espiral enunciativa capaz de reduzir a crise, isto é: capaz em primeira instância de a normalizar enquanto problema oficial da sociedade, criou condições excepcionalmente propícias ao trabalho de definição e institucionalização francesas do grupo ora tornado realidade incontestável e incontornável. Por outras palavras, o outro norte-africano consagrou-se como princípio de identidade ao qual é emprestada uma crença colectiva cuja força vem de existir com a garantia (e através dos principais instrumentos e procedimentos de classificação) do Estado francês.
Note-se que a própria urgência (ou compulsão) de explicação com vista a dar respostas rápidas e eficazes concorreu para reforçar a existência real do grupo, isto é fortalecer a sua autenticidade. Ao vitrificar em prefácios condenatórios da violência, em usos acríticos de categorias de pensamento prêt-à-porter como integração, exclusão, inclusão e desenraizamento, na noção estéril de multiculturalismo, a explicação portátil cooperou no processo de unificação do grupo como anel de Lebenswelt deprimido, marginal, atópico.
Desta complexa realização resulta ainda uma importante consequência. O que parece ser o acesso por fim de um grupo antes informe, sem peso político, à ordem da representação política legítima, significa que outras formas potenciais e até concorrenciais de reagrupamento terão menos hipóteses de vingar. Por outras palavras, a consolidação do grupo emergente como norte-africano e muçulmano tende a impedir que outros grupos baseados na combinatória desses atributos com outros ou apenas noutros (por exemplo, de classe) possam surgir, objectivar-se.
Há alguns riscos nisso. Destaco um. Na instituição do grupo e da identidade que lhe faz par como lugares onde a desigualdade repercute, lugares de destituição, de atrofia, de impasse, em suma: de injustiça multidimensional que o Estado francês reconhece mas pouco faz para eliminar, nessa instituição nas coisas e nas mentes germinam condições favoráveis para que os membros do grupo sejam vulneráveis (ou receptivos) a retóricas instrumentais de radicalização islâmica. Se o Daqui vê-se a França [v] não pode ser idealização do futuro mas apenas miragem, ou melhor: desalento irónico que espelha, na diferença, uma experiência colectiva unitária de exclusão injusta, de sentimento de rejeição, produto de um ostracismo humilhante que o próprio grupo discriminador oficialmente reconhece e condena, então muitos membros do grupo serão tentados a levar a apostasia às últimas consequências e a geometrizar o presente adverso na utopia fundamentalista (que, em contraponto à ausência de futuro, ao menos permite fantasiá-lo). Se isso um dia suceder, então sim poder-se-á falar com propriedade de conflito civilizacional com aqueles que não respeitam o contrato social. [vi] Mas com uma ressalva. Conflito civilizacional à maneira das (falsas) tradições históricas [vii] que do mesmo passo que se inventam quotidianamente mobilizando recursos materiais e simbólicos de Estado desencadeiam, por conformismo lógico, a amnésia da sua sociogénese pública.


[i]Evocação da obra de François Dubet, La Galère: jeunes en survie, datada de 1987. La galère topologiza fluidamente a experiência de vida dos jovens dos arrebaldes das grandes cidades francesas que, sujeitos ao círculo infernal da dominação material e simbólica, respondem criando mundos (relativamente autónomos) de sentido e de prática dos quais as classificações oficiais não conseguem dar conta.
[ii] Vale a pena lembrar que não são de hoje episódios como os observados dias a fio nos arredores desfavorecidos de Paris. No início dos anos 80, em Les Minguettes, nos subúrbios de Lyon, grupos de jovens muçulmanos de segunda geração, então reivindicando a nacionalidade francesa que lhes estava vedada, provocaram distúrbios públicos semelhantes, incluindo o (espectacular) incendiamento indiscriminado de automóveis.
[iii] Tese defendida, entre outros, por
José Pacheco Pereira.
[iv]A este propósito, leia-se a interessante síntese de Stéphane Beaud et Michel Pialoux,
"La «racaille» et les «vrais jeunes». Critique d’une vision binaire du monde des cités", Liens Socio, Novembre 2005.
[v] Segundo Tiago Barbosa Ribeiro [
Teremos sempre Paris, a.estrada:, Novembro 2005], expressão empregue por alguns habitantes das zonas deprimidas de Aulnay-sous-Bois ao mirarem ao longe a Torre Eiffel.
[vi]Como nota, não sem ironia, o Pedro Caeiro, num dos mais lúcidos (e interpelantes) textos publicados na blogosfera portuguesa sobre a questão, intitulado:
os mordomos e os seus alibis.
[vii] Miguel Cardina,
Pretérito-mais-que-perfeito, a.estrada:, Dezembro 2005.

Comentários

Anónimo disse…
Só uma pergunta:

Tudo isto é escrito a partir de que material recolhido na prática?

Foi baseado em que informação de campo?

Como se sabe se eram ou não eram filhos de emigrantes?

Por outras palavras, bibliografia teórica à parte, quais as fontes usadas?


Poergunto isto porque pelos jornais e pela tv não temos acesso a nada que permita dizer alguma coisa.
Anónimo disse…
1- « nos (poucos) testemunhos (a que tivemos acesso) dos jovens ditos vândalos dos subúrbios problemáticos, das cités guetizadas, não se observou o mínimo afloramento de contra-valores ou contra-representações (ou valores e representações irreconhecíveis) – bastará destacar o sentido de justiça tipicamente republicano desses jovens»


Se são poucos os testemunhos como se pode depreender que representam alguma coisa no conjunto dos acontecimentos?

2- na apresentação que produziram de si próprios, convocaram a pauta francocêntrica do arabe ou do maghrébin como argamassa do nós, do grupo.»

a)Mas afinal eram ou não eram magrebinos na sua maioria. B) os magrebinos não são descendentes de imigrantes?

« não são imigrantes, muitas vezes nem sequer os filhos destes»

Então em que nos ficamos? Emigrantes ou magrebinos descendentes dos gauleses?

3- « a verdadeira geração de imigrantes, menos integrada, não partilha). Por outro lado, reserva a uns quantos, poucos, a posse e/ou usufruto legítimo desses mesmos bens. »

Afinal são emigrantes ou não são emigrantes? E que quer isto dizer? Que foi problema de luta de classes entre eles?

4- « não têm porta-vozes com os quais seja possível dialogar, negociar»

Aqui está mais um exemplo de falta de fontes. Eu também li isso nos jornais mas li outras coisas nos blogues partidários com destaque de elementos para o local e negociações com ditos representantes que até tinham caderno reivindicativo muito antes de isto vir para os media. Muito antes dos desacatos começarem.

Era isto, por exemplo que precisava de saber para me atrever a escrever o que quer que fosse.

5- « Em síntese, a caracterização fornecida foi/tem sido a seguinte: são de origem magrebina, muçulmanos (frequentemente desinteressados do culto e do Corão), predestinados ao inêxito escolar e ao desemprego e a continuar nas fileiras do subproletariado miserável, desintegrados, excluídos, relegados para as margens da sociedade, sofrendo na invisibilidade, vivendo existências contrastantes ou dúplices – obedientes, afectuosos e solícitos em casa, perante a família; arruaceiros e delinquentes impiedosos na rua, perante o gang; discriminados pela tez e pela pronúncia; desesperados, ressentidos, etc.»

Mas onde é que se foi buscar informação para se dizer isto? Com base nos dois testemunhos que se deram por exemplo no início do texto? E afinal eram ou não eram muçulmanos? Já li de tudo, inclusive aqui

6- o resto podia ser dito a propósito de qualquer outro acontecimento em qualquer outro local ou época. É falta de integração mas não se explica como e o que se entende por integração na prática. Seria então mais proveitoso pegar-se nas medidas políticas anunciadas – caso de favorecimentos a empresas que lhes dêem trabalho e caso de investimento em protecção estatal a estes grupos- com mais dinheiro injectado para os calar e confrontar-se com outros locais para se saber se esta é a tal integração ideal. A par da manutenção das medidas de exclusão jacobinas praticadas pelo Estado Francês.

Mas, ainda assim continuo na mesma- afinal isto teve ou não teve carácter “muçulmano-magrebino” ou foi apenas de grupos de franceses suburbanos- seja lá o que isso for.

E faltava dizer como reagiram os tais representantes destes grupos que aparecem sempre na sombra mas com quem os grupos partidários sempre tiveram ligações e o próprio governo as praticou.
Anónimo disse…
"não se observou o mínimo afloramento de contra-valores ou contra-representações"

A frase pede interpretações? Que contra-valores/representações seriam "verdadeiros" contra-valores/representações na tua acepção? Porque não o parecem ser o desprezo pela ordem pública, o desprezo pela integridade física de pessoas inocentes e por bens propriedade de pessoas inocentes, o desafio e provocação às forças policiais, o desprezo pela igualdade dos sexos (que não é particular a estes subúrbios, mas que aqui se sente com especial acuidade quando vemos por exemplo as adolescentes que não usam o lenço a serem tratadas de salope pelos rapazes), as relações de poder baseadas na lei do mais forte, a linguagem "argotizada" e dialectizada, i.e. fechada aos forasteiros, a apologia ou pelo menos aceitação da violência como refúgio, patente na música e nos filmes cujo público alvo é precisamente a juventude "banlieusarde", as práticas comunitaristas e rejeição dos valores mainstream, a cedência de terrenos identitários a heranças culturais não só estrangeiras à França como cristalizadas num tempo menos que medieval. Não digo que estas características não resultem do isolamento social das banlieues, mas antes de aceitar que não há ali contra-valores civilizacionais como os entendo gostaria de ver uma demonstração da afirmação.
Anónimo disse…
Aqui fica uma síntese das ideias retiradas do post:


1- os confrontos de Paris e restantes cidades europeias não têm características de confronto civilizacional. (o que quer que isso seja, aqui demonstrado como não sendo oposição religiosa e ideológica do “oriente muçulmano”.

E não o é porque inclusive eles não são emigrantes. (esta ideia vai ser logo negada ao longo da exposição da defesa da tese)

Não é porque há integração em excesso ao querer torna-los personagens de uma sociedade de consumo, a que eles “naturalmente” não pertenceriam- Como e porque motivo não é explicado

2- Tese de que são rebeldes sem causa e sem organização ou representação passível de diálogo. Na prática essa ideia foi negada pelos factos que a antecederam e pelos factos que a sucederam
a) tinha havido “livro de reclamações” muito anterior ao vandalismo e houve negociação posterior por parte do governo

3- não havendo grupo definido à partida- pelas razões não explicadas pelo Bombyx, acha ele que foi “fabricado” ou semi-institucionalizado à falta de melhor, ao longo dos tumultos. A partir daí disserta no vazio, partindo do tal pressuposto não confirmado pelos factos.
4- A partir daí foi “criado o grupo magrebino-muçulmano para dar nome ao problema quando o problema poderia não ser este. Pode ser uma boa tese, resta saber se tem ou nem tem fundamento. Porque eu não posso teorizar sobre um grupo que desconheço, à custa do nome e institucionalização política que lhe é dada. Até pode ser uma grande verdade de propaganda mas faltam-me os dados.

Não é por acaso que acerca disto se leram os mais contraditórios testemunhos- desde o André Belo (http://www.garedelest.blogspot.com/) que fala deles como franceses e seus alunos universitários, ao Rui Curado da Silva (http://klepsydra.blogspot.com/2005_11_01_klepsydra_archive.html#113112100109049203) que os conheceu de modo muito menos teórico e mais realista e que faz retrato totalmente antagónico. (e limitei-me a dar um exemplo colhido na blogosfera dentro da mesma área política de esquerda (para ser mais insuspeito).
Anónimo disse…
Rectificação dos links da análise do André Belo:

http://garedelest.blogspot.com/2005/11/mais-subjectivo-mais-visto-do-local.html
http://garedelest.blogspot.com/2005/11/mais-subjectivo-mais-visto-do-local_09.html
http://garedelest.blogspot.com/2005/11/culpa-no-dos-estrangeiros.html


Para confrontar com a do Rui Curado da Silva. Por mim não basta nenhuma delas sendo que a do André Belo me parece absoluta poesia ideológica sem nunca lá ter posto sequer os pés “:O))))
Anónimo disse…
Rectificação dos links da análise do André Belo:

http://garedelest.blogspot.com/2005/11/mais-subjectivo-mais-visto-do-local.html
http://garedelest.blogspot.com/2005/11/mais-subjectivo-mais-visto-do-local_09.html
http://garedelest.blogspot.com/2005/11/culpa-no-dos-estrangeiros.html


Para confrontar com a do Rui Curado da Silva. Por mim não basta nenhuma delas sendo que a do André Belo me parece absoluta poesia ideológica sem nunca lá ter posto sequer os pés “:O))))
Anónimo disse…
Caros Zazie e DL,
responderei a ambos em simultâneo, por pontos, com o desenvolvimento possível, sendo que nem todos os pontos da resposta se dirigem em simultâneo aos dois.
1. Disse e recordo agora – por outras palavras – que não pretendia responder à questão que por coincidência o Zé Mário ontem utilizou para titular um post seu: por que arderam carros em Paris? Este esclarecimento é importante porque lendo as objecções que levantam ser-se-á levado – eu seria levado – a pensar que aderi à incógnita, quando precisamente proponho uma translação problemática. O cerne da minha questão é o da construção social do grupo antagónico. Perder isto de vista é perder o sentido do próprio texto.
2. Atenção à faculdade/tentação de tresler. Um só exemplo. Ao contrário do que a Zazie me imputa, eu nunca digo nem sugiro que há integração em excesso ao querer torná-los personagens de uma sociedade de consumo, a que eles “naturalmente” não pertenceriam. Tradutore traditore, mas não tanto. Para acrescentar alguma coisa ao que escrevi – mas que lhe está implícito –, direi aqui que, no meu entender, a própria noção de integração deve ser largada. Ao estar no centro dos jogos de classificação política é uma noção demasiado armadilhada para poder ter alguma fecundidade analítica.
3. Um post não é um ensaio científico. Se o texto em causa fosse de cunho científico, evidentemente não deixaria de em muitos pontos recorrer ao condicional – sublinhando o carácter conjectural das proposições, reduzindo portanto a assertividade. Acresce que a Zazie já me chamou uma vez, ironicamente, professor. Não quero correr o risco de lhe dar boa oportunidade para repetir a graça.
4. O uso depreciativo do adjectivo teórico merece uma palavra à parte. Por duas razões. Primeiro porque, no contexto em que foi empregue, pressupõe erradamente, de acordo com a velha e caduca antinomia teoria-prática, que quem vive as situações de facto, quem as protagoniza, conhece sempre melhor o que se passa. Segundo porque (deliberadamente ou não) desconhece que o valor da teoria depende da sua mobilização na pesquisa empírica. É esse justamente o exemplo de François Dubet e Stéphane Beaud (e outros investigadores franceses) que em diferentes momentos desenvolveram demoradas pesquisas de terreno junto dos ditos banlieusards.
5. Embora não me tenham apontado o defeito, dou alguma – mas não toda – razão ao João Pinto e Castro quando afirma que podando algum do hermético jargão de que a prosa padece, o resultado final poderia ser muito melhorado. Aí terá residido parcialmente alguma dificuldade de seguir o fio à meada e compreender o argumento.
6. Quanto à questão dos valores e representações e do conflito civilizacional.
Tanto quanto se sabe – e não há quaisquer razões para supor que o que não se sabe viria a infirmá-lo – os jovens banlieusards nem entre eles fazem a apologia da delinquência e da criminalidade e das formas difusas de vandalismo em que se envolvem/participam (nunca ninguém lhes ouviu dizer que são coisas boas, que merecem ser estimadas e encorajadas), nem oferecem mundividências revolucionárias (de inspiração islâmica ou outra), antes justificam-se com e condenam a injustiça que os franceses lhes infligem.
Dito isto, se em vez de replicarmos o modelo habitual de classificação – que o DL reproduz grosso modo – olharmos de dentro da própria acção delinquente (chamo-lhe assim para facilitar a compreensão), vemos que, no arbítrio dessa acção, estão valores que nos são familiares e até caros: a honra, o poder, a coragem (física), o respeito, a autoridade, o reconhecimento, a própria propriedade, valores esses que de um modo geral sobretudo as culturas masculinas juvenis conglutinam – valores mainstream portanto, no vocabulário do DL. Não são, portanto, nem estranhos (do outro mundo) nem inversos os valores que dão sentido às condutas dos jovens banlieusards.
Mas ainda que assim não fosse, nada autorizaria a precipitarmo-nos para o conflito civilizacional como causa das coisas. Uma simples pergunta permite perceber porquê. Por que não ocorre falar de conflito civilizacional para categorizar a clivagem perante o crime organizado, seja nos Estados Unidos, na Rússia, no Japão ou em outro qualquer recanto do globo? No critério nomológico do DL (verificadas todas as reversões valorativas que identifica), essa seria a conclusão a tirar. Ninguém a tira; e o facto de ninguém ceder à classificação mostra-nos que, no caso dos banlieues, o conflito civilizacional não passa de um a priori (um preconceito, no duplo sentido científico e comum) sem quaisquer dados empíricos a suportá-lo.
7. Um exercício com algum paralelo servir-me-á para responder por junto a várias das resistências da Zazie. Numa obra intitulada Learning to Labour, Paul Willis mostrava como, nos idos de 70 do séc. XX, a relação com a escola e o seu específico sistema de autoridade mantida pelos lads da working class se inscrevia em complexos processos de reprodução da siuação de classe. A cultura antiescola que desenvolviam, constituída como universo de riso, escárnio, zombaria e agressividade, levava-os a desejar largar a escola o quanto antes para ir trabalhar. A consequência não intencional desta opção consciente é que ela acabava por contribuir para reproduzir as condições que objectivamente limitavam as suas oportunidades de vida. Com efeito, ao deixarem a escola com mínimas qualificações escolares para ingressar na profissão operária, os lads, tal como os seus pais na geração anterior, condenavam-se a permanecer toda a sua vida activa nos lugares inferiores das hierarquias profissionais e, consequentemente, na situação de classe da qual eram oriundos.
Pergunto: por que não recorrer a um esquema analítico semelhante para decifrar, nos seus traços mais gerais, os constrangimentos que se exercem sobre a situação social dos jovens banlieusards? Porquê pensar estes como seres que radicam noutro mundo, numa putativa cultura estranha e adversa? A resposta é simples. Porque é esse o lugar desse outro na classificação política instituída nas coisas e nas mentes. A Zazie quer arrastar-me para essa classificação, para que debata, dirima razões e formas de prova a partir das suas categorias de significação (o que até se observa no próprio estatuto epistemológico ímpar que atribui aos factos, mas talvez mais claramente na insistência em corrigir-me e provar as falácias do meu argumento com os dados da negociação/representantes do outro/caderno reivindicativo definido muito antes dos acontecimentos de Novembro). Exactamente o contrário do que, desde o início, quis fazer. Entre algo mais, pretendi desmontar – e não reproduzir – a dita classificação e mostrar que essa classificação e o respectivo mundo de coisas e disposições tem, no momento da crise, um especial momento de actualização.
8. Por razões que se tornarão muito em breve claras, já não escreverei mais nenhuma linha sobre este assunto. Estas foram as minhas últimas palavras sobre esta matéria.
Anónimo disse…
bem, eu agora não tenho tempo para ler isso tudo mas quero deswde já esclarecer duas coisas:

1- não li nem estava a par do post do Zémário.

2- chamei professor na brincadeira- nutty porfessor do Jerry Lewis

3- depois venho cá desbastar isto a ver se encontro alguma coisa concreta que responda às minhas perguntas.

4- como as minhas perguntas eram simplórias até as posso resumir numa mais geral:

mas isto é foi uma tentativa de fazer sociologia com o que aconteceu em França? Tentativa de caracterizar um grupo?
ou tentativa de responder a uma caracterização política feita pelos poderes contrapondo uma desconstrução do mesmo sem se conhecer o que se estava a falar?


Era só isto. Depois volto cá para ler, agora tenho de trabalhar
Anónimo disse…
bem, só agora tive tempo de ler a resposta e reler o texto mas quando cheguei ao ponto 8 reparei que, pelos vistos, não adianta muito:

«8. Por razões que se tornarão muito em breve claras, já não escreverei mais nenhuma linha sobre este assunto. Estas foram as minhas últimas palavras sobre esta matéria.»

se não há mais uma linha então acabou aqui a tentativa de se palrar um pouco sobre esta história dos desacatos franciús.

E, conflito de civilizações à parte, eu até só queria entender esta história porque quanto ao dito conflito também nunca entendi.

Mas pronto. Retiro-me para o meu estamíné e de lá lançarei mais quelque chose extra-diálogo...



inté

que estranho, perder-se tanto tempo a escrever uma coisa assim e depois cortar cerce que nem mais uma linha

":O.
Anónimo disse…
(2ª tentativa, o que escrevi aqui anteriormente pelos vistos evaporou-se) - Gostei muito do texto, achei interessante e fértil a refocagem, penso deter-me um pouco a reflectir nisso.
Anónimo disse…
Caro Afonso: A resposta foi bastante clarificadora. A comparação com o crime organizado mostra bem que o tratamento "sociológico" da crise pelos media e pelos políticos alertando para uma suposta clivagem civilizacional é pouco apropriada. Poderíamos falar então de quê? clivagem comportamental? grupo? tribo? reivindicação (creio que não, pois ninguém esperaria ser ouvido naquelas circunstâncias)? pura e simples expressão primitiva de revolta?

[Já agora, remember me está mal escrito ali em baixo.]
Anónimo disse…
«creio que não, pois ninguém esperaria ser ouvido naquelas circunstâncias»

não só esperavam como foram

Por isso é que eu insisto nos factos que tanta comichão fazem a quem vive de palavras.

Foram ouvidos. Estavam a ser ouvidos antes. Foi para lá tudo quanto era militante de quadrante político diverso. Houve convocatórias em directo na blogosfera.

E mais. há grupos e grupos mas para se caracterizar um grupo é preciso saber quem são os componentes visíveis e os menos visíveis.

Uma coisa são putos de 12 anos, outra os que foram a julgamento e outra ainda os que não foram e que também estão por caracterizar.

Quanto ao grupo deixo aqui apenas uma pergunta:

acham legítimo caracterizar um comportamento marginal como um todo, igual em França com 5 milhões de magrebinos muçulmanos a um grupo em tuga em que nem existe essa característica de tão forte oposição religiosa?

por muito esbatida que possa estar, essa característica que os diferencia-

pela pele, pelos nomes, pelo passado, pelas origens, pela religião-

e por muito misturada com outros marginais que nada têm a ver com o islão, a verdade é que os acontecimentos decorreram durante o Ramadão e também não creio que este factor seja de mandar logo para o lixo porque não se enquadra com o contra-esquema teórico que se quer opor ao instituional que foi vendido.

Fora isso haveria muito mais perguntas a fazer e as principais seriam comparações com países com características idênticas de desemprego e marginalidade e grupos étnicos semllantes- caso de Inglaterra- e ver no que diferem não só os grupos como as políticas e comportamentos socais de "integração".
Anónimo disse…
fónix esse código todo que está aí em cima sou eu: Zazie

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