Dos limites da tolerância

Ao contrário do que diz o Miguel, a tolerância não é a capacidade de aceitar o diferente. Quando se tolera não se aceita e quando se aceita não é necessário tolerar. Tolerar ou praticar a tolerância implica com efeito um juízo moral que censura o objecto da tolerância. Constitui um permissio negativa mali, um consentimento na melhor das hipóteses indulgente ou condescendente. Ser tolerante em relação ao estrangeiro, ao imigrante, ao negro, ao judeu, ao árabe, ao chinês, ao homossexual, ao velho, a qualquer topos identitário significa tão-só transigir na co-presença, sem renunciar ao ascendente lógico e moral que, por intermédio da objectivação da praxis tolerante, classifica, deprecia, menospreza, distancia, exclui o outro.

Comentários

Anónimo disse…
O princípio é bom, esse. Do género: eu tolero os ciganos, os pretos e os judeus, bem com os homossexuais, os coxos e os que gostam de ler Guerra Junqueiro. Desse ponto de vista, V está correcto. Mas temos de ter um princípio qualquer que nos distinga dos que não toleram; ou seja, o princípio da tolerância. Por isso, tolerar, às vezes, é reagir como se não fosse nada, de outras vezes é atribuir significado. Se abolíssemos o princípio da tolerância ficávamos sem parâmetros, como se reagíssemos a partir do nada. E o nada não existe. Na verdade, eu sou tolerado em Brazaville ou em Bali.
Anónimo disse…
Percebo o argumento, concedo que nas actuais circunstâncias histórias não haverá princípio alternativo que satisfatoriamente possa substituir o princípio da tolerância. Abandoná-lo, ou tão-só enfraquecê-lo, miná-lo, produziria o efeito perverso de abrir espaço não tanto para o vazio quanto para a intolerância, então perigosamente inclassificável. Mas isso não significa que percamos de vista os seus limites. Na construção tolerante da diferença incorpora-se uma relação de poder assimétrico. Aliás, é este aspecto central que me leva a discordar da sua última nota. Posto numa fórmula simplista: em Brazaville ou em Bali ainda assim eu tolero mais do que sou tolerado. Mesmo que possa ser morto.
Anónimo disse…
Percebo o argumento, concedo que nas actuais circunstâncias histórias não haverá princípio alternativo que satisfatoriamente possa substituir o princípio da tolerância. Abandoná-lo, ou tão-só enfraquecê-lo, miná-lo, produziria o efeito perverso de abrir espaço não tanto para o vazio quanto para a intolerância, então perigosamente inclassificável. Mas isso não significa que percamos de vista os seus limites. Na construção tolerante da diferença incorpora-se uma relação de poder assimétrico. Aliás, é este aspecto central que me leva a discordar da sua última nota. Posto numa fórmula simplista: em Brazaville ou em Bali ainda assim eu tolero mais do que sou tolerado. Mesmo que, no fim da linha, possa ser morto.
Anónimo disse…
Acho que não se deve perder todo o tempo na investigação microscópica das palavras, em busca de diferenças entre "aceitar" e "tolerar" (que aliás são mais da semântica do que da política ou do instável contrato que estabelecemos, a cada instante, uns com os outros). Eu penso que mais importante do que tudo é reduzir a desconfiança. O muçulmano que, em Londres, luta pela incorporação de uma tradição sua na comunidade, entende uma recusa do governo em permitir que isso ocorra não apenas como uma intolerância em relação a essa tradição específica mas como um ataque à religião e costumes onde ela se incorpora. Ele desconfia do que está por detrás dessa determinação do governo. Assim como os políticos ingleses desconfiam que a autorização legal de uma determinada tradição seja apenas isso, que não se torne de repente (não mais que de repente) em instrumento de outras coisas e, provavelmente, coisas terríveis.
Essa desconfiança toma as pequenas "recusas" e "intolerâncias" como armas de uma batalha maior. É invisível e não faz falta nenhuma.
Anónimo disse…
Caro Afonso, a frase que me atribuis não é minha, mas citei-a por me parecer correcta/discutível. E suponho que o problema começa pela "semântica": o verbo tolerar tem hoje um significado quase depreciativo - e o dicionário não ajuda: "do Lat. tolerare, v. tr., consentir tacitamente; ser indulgente; deixar passar; permitir; desculpar; suportar." [in priberam.pt] Menos mal com a tolerância, mas ainda assim imperfeito: "do Lat. tolerantia, s. f., qualidade de tolerante; acto ou efeito de tolerar; atitude de admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adoptada por si mesmo; acto de não exigir ou interditar, mesmo podendo fazê-lo; permissão; paciência; condescendência; indulgência" [idem]. Trago aqui as definições para se perceber como as palavras acabam por atrapalhar mais. Mas, como dizes, "nas actuais circunstâncias histórias não haverá princípio alternativo que satisfatoriamente possa substituir o princípio da tolerância. Abandoná-lo, ou tão-só enfraquecê-lo, miná-lo, produziria o efeito perverso de abrir espaço não tanto para o vazio quanto para a intolerância". Por mim, prefiro dizer que a minha liberdade começa onde começa a do outro - e é este o exercício que deve ajudarmo-nos a conhecer ("co-naître", co-nascer) com o Outro (sem ser só "tolerá-lo").

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