Miséria e morte na América

No rescaldo a quente e ainda incrédulo dos efeitos do Katrina, do morticínio em larga escala, dos caos e devastação que provocou, avoluma-se a crítica e a identificação de falhas e faltas. O rol é extenso: subestimação do impacte e das consequências destrutivas de um furacão de magnitude superior como o Katrina, prevenção inapropriada, planos de emergência e evacuação inadequados, fragilidades nos sistemas de diques e represas e de bombagem das águas do lago Pontchartrain e do rio Mississipi, alertas e auxílios tardios, coordenação deficiente, incapacidade de mobilizar rapidamente meios para acudir às populações em risco de vida, aos desalojados, deslocados, em fuga, a caminho de lugar incerto, sem alimentos e água potável dias a fio.
Discussão, revolta e apuramento de responsabilidades nos diferentes níveis de administração deixarei para outros. Não quero precipitar-me para balanços e conclusões, correr o risco de parecer procurar gratificação em exercícios vácuos sobre tanta desgraça, desolação e exaspero.
Há um só aspecto que quero abordar.
Mais do a que negligências de vária ordem corrigíveis a partir da presente experiência dramática (e traumática), a inesperada (e gigantesca) dimensão da catástrofe humanitária ter-se-á devido acima de tudo a uma espécie de autismo – um racismo tão radical quão institucionalizado em que classe e cor da pele convergem – que leva a sociedade americana de um modo geral a ignorar por completo os mais miseráveis dos seus infelizes. Em especial nos Estados do Sul, logo nos dois mais atingidos pela fúria do Katrina: Luísiana e Mississipi, há gente, quase toda negra, absolutamente indigente, espalhada por povoados e casario dispersos. Essa gente, frequentemente analfabeta ou quase, sem recursos ou dinheiro para nada, a viver muitas vezes na normalidade sem energia eléctrica, sem acesso a bens de consumo e a cuidados de saúde, excluída até das configurações mais simples da sociedade da informação e do entretenimento, nem terá entrevisto (ou seja: ouvido falar d)o que lá vinha, nem se terá posto o dilema de ficar ou abalar (mas para onde?).
A Grande, Poderosa e Rica América possui, como não se encontra em lado nenhum da Europa comunitária, extensas bolsas de pobreza extrema, liminar, bolsas constituídas por autênticos párias, proscritos, intocáveis. Isolados, lazarentos, pretos, não votam, não contam, não existem. Ou só existem, tarde demais, no momento em que os seus corpos aparecem a flutuar, semi-putrefactos, em estados variáveis de decomposição, nas águas fétidas que submergem parcialmente Nova Orleães ou nos charcos, pauis e pequenas lagoas que as águas do Golfo do México deixaram para trás ao recuar – felizmente, ao menos isso, tem prevalecido a decência de não os transformar em (sórdido) objecto mediático. Esse ostracismo por omissão, é componente intrínseca do American Way of Life, que as políticas neo-liberais dos últimos anos mais não fizeram que acentuar. Shan’t we ever forget it.
Dois breves apontamentos suplementares. Não acalento qualquer sentimento primário anti-americano; das cidades dos Estados Unidos onde já estive, Nova Orleães é (era?) a minha preferida.

Comentários

zazie disse…
pois até eu, que não só não sou anti-americana como embirro com anti-americanismos primários há muito, sou obrigada a pensar o mesmo...

que coisa mais terceiro-mundista

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