Guerra dos mundos [desenvolvimento]

Tenho sérias dúvidas de que estejamos perante um conflito civilizacional. Tenho-as também de que haja exemplos da História a colher. A Paz de Munique, por exemplo, e o putativo pacifismo timorato que encobriu e que hoje de novo romperia. Inclusive interrogo-me se para situar a declinação terrorista actual do fundamentalismo islâmico e a sua relação com o Ocidente será lúcido convocar a noção de guerra. Muito menos reservado sou quanto à possibilidade de êxito da coisa a que chamam guerra. É de facto altamente improvável que possa ser vencida. Não acredito que possam ser aniquilados, exterminados um por um, até ao último, todos aqueles que, explicam alguns supostos peritos, nos querem ver a todos mortos. A ênfase cola-se à retórica (por exemplo, do Armagedão) e dá guiões narrativos que encontram o imaginário hollywoodesco do combate final heróico e triunfante. Mas a posição musculada que o ego soberbo solicita dificilmente resistirá ao embate do primeiro morticínio diferido no tempo. Quando o atentado de uma das muitas células autónomas da Al-Qaeda matar logo e, intangivelmente, por acção química ou biológica continuar a matar ao longo de anos, décadas, a intransigência esfumar-se-á num ápice. A não ser que entretanto no Ocidente os regimes políticos tenham revestido perfis autocráticos, próximo da configuração ditatorial. Poucos méritos reconheço pois à posição musculada, e ainda menos eficácia.
Nos Estados Unidos, caminha-se com efeito para a guerra. Não é de hoje o USA Patriot Act. Não é de ontem a chantagem do you are either with us or against us. No Reino Unido, para impor convenção com profundidade similar (o Prevention Terrorism Act na primeira versão data de 1974, na altura visando as actividades do IRA), aliás: mais arrojada, Blair, ironia do destino, pouco mais enfrenta que a oposição da House of Lords – depois dos acontecimentos de 7 de Julho por certo condenada a esbater-se. Um estado de guerra, declarado ou pelo menos na representação difusa: inequívoco, apressará o estado de excepção, e per se legitimará a supressão de liberdades civis que doutro modo obrigaria a justificação exaustiva, e mesmo assim provavelmente seria considerada inaceitável. Nem me interessa imputar qualquer deriva autoritária a Bush ou a Blair. É a lógica, a necessidade restritiva, que por seu turno se incorpora na praxis política, que importa não acoitar. Algumas perguntas inconcebíveis há pouco tempo começam assustadoramente a fazer sentido.
Quanto tempo demorará até que tenhamos obrigatoriamente inscrito no bilhete de identidade a filiação religiosa? Quanto tempo transcorrerá até que cidadãos dos países ocidentais, nados nos Velho e Novo Mundos com ascendentes muçulmanos (emprego deliberadamente o descritivo absurdo), venham a ser sequestrados em campos de recolhimento (para não lhes chamar de concentração) enquanto a árdua campanha militar dura? Quanto tempo faltará para se dar início à caça às bruxas, dos que evidenciam falta de firmeza, tibieza, perante o inimigo e cobardia na linha da frente? Quanto tempo passará até que tudo isto integre a vontade e mesmo as reivindicações políticas de uma maioria esmagadora dos cidadãos das Democracias Parlamentares? Quanto tempo decorrerá até que se instale a paranóia securitária e um regime de acção vigilante? Quanto tempo teremos pela frente antes da generalização da inversão da presunção de inocência que já hoje se observa para os detidos em Guantanamo? Muito? Talvez menos do que se pensa. Leia-se isto e vejam-se estes dados. Preocupante. Muitíssimo inquietante. Embora não esteja em sintonia total com os pressupostos do raciocínio do Lutz (desconfio que o Outro é muito menos coerente e homogéneo do que sugere a restituição algo simplificada do Manuel Resende em que o Lutz se baseia), no geral partilho e subscrevo o ponto de vista por ele desenvolvido e volto a insistir na opção da negociação começada a esboçar pelo FNV.
Não sou insensível aos alertas do Paulo Gorjão. Parece-me contudo que conhece demasiado bem a Al-Qaeda. Quer dizer, parece-me que, cognitivamente, se estriba em duas características projectivas cuja comprovação está por fazer: a Al-Qaeda será a Besta inaudita do fundamentalismo ideológico-religioso, muito pouco disposta, por causa do seu sistema interno de valores inflexíveis, a cedências negociais e talvez a organização política com diferentes alas, umas mais radicais outras mais moderadas. Por meu lado, apenas digo que sei pouco e não me dou por satisfeito com a perspectiva lacunar que vejo alguns arautos da geo-estratégia política (não me refiro ao Paulo Gorjão) pretenderem impor como realidade insofismável.
No limite, talvez a negociação seja impossível. Talvez tudo isto reverta num terrível impasse. De todo o jeito, com a guerra total que nos propõem (patrocinada por alguns intelectuais à direita do espectro político como Pacheco Pereira), também ela a travar, não esquecer, em nome de um Ser Superior, mitificado – A Nossa Civilização –, a minha convicção é que nada mas nada de nada de fundamental se pode solucionar. É uma miríade da teoria clássica da resolução dos conflitos militares confiar que algum dia se poderá infligir baixas avultadas nas fileiras da Al-Qaeda, no ideal dizimá-las, para a encostar à parede e levá-la então sim – como aconselha o Paulo Gorjão – a aceitar participar em rondas negociais frutíferas. Tanto quanto percebo os Jundullah mortos na luta perduram transformando-se em ícones que reforçam a capacidade de recrutamento da Al-Qaeda. Do braço de ferro marcial resultará assim não mais que uma espiral de carnificina. Até ao dia em que, como já referi, o uso terrorista de engenhos explosivos de destruição massiva torne absolutamente insuportável a continuação do stalemate. Se nada se pode ganhar com a guerra, em contrapartida, muito se perderá. Bem vistas as coisas, encaradas sem tergiversar, o declínio civilizacional, o nosso declínio, se calhar até já principiou.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A história e a moral

Professor universitário

Errata