Eppur si muove (racismos)

José trabalhava nas obras já há algum tempo. Para trás, muito, os seus amores perfeitos: os livros, o Desassossego do Pessoa. «Ó preto! Anda cá: leva-me este entulho daqui para fora. Mexe-te!»
Tinha vindo como muitos outros, sem destino nem sorte, através de esquemas que lhe tinham custado, a si e aos seus, da miséria o dobro. Mas não hesitara. Oportunidade como a que lhe abrira o cônsul, não surgia todos os dias. Sabia bem que, acaso a recusasse, à pária gente ninguém, nem a própria, perdoa a morna e o prejuízo.
Nem sequer estava sozinho. Amigos, conhecidos, primos da sua e de outras paragens, uns já chegados, outros a caminho ou que haveriam de vir, em porões putrefactos dos restos e dos dejectos, acompanhavam-no naquela cilada irrecusável. O que mais o transtornara na viagem, confessou-o mais tarde por carta, sem inocência, a irmã mais nova, ainda esta não tinha entrado na idade das regras, fora a impossibilidade de asseio pessoal. Água, só para beber, e nem para isso sobrava. «Mas a gente habitua-se a tudo».
«Ó meu preto de merda, o que é que julgas que estás a fazer?! Tira-me essa porra já daqui! Se calhar julgas que hoje não há mais nada para fazer.»
«O cafre é bem escurinho»
, constatava José sem pasmo. No início tinha-o atordoado. O falario daquele mandante desvirtuara a sua natureza previsível. Afinal, a negritude unia-os. Mas algures na avidez da distinção profissional esquecera-o, assim parecia a José, excepto quando falava, comiserativo, com os engenheiros e donos de obra. A arrogância e os ares de cavalgadura dissipavam-se na hora. Mais preto que ele então, sempre.
«Ó meu sacana de preto, já faltou mais para apanhares um pontapé no cu e ires para a rua. Se não queres trabalhar há mais quem. Não te volto a avisar.»
José lá prosseguiu. Sem especial temor. Não havia memória de que o cacarejo alguma vez houvesse desassenhoreado alguém. Fogo de vista a que o espaventoso encarregado se obrigava pela importância de si. Não era criatura inescrutável. Tudo se aplanava na compreensão. Até a boçalidade, por vezes revestida de subserviência, de desembaraçar os intestinos a qualquer um, fazia parte da libido imposta pela situação.
«Sr. José, venha daí rapidamente que está ali a ser montada uma estrutura e é preciso alguém para segurar uns cabos.» A voz estilizada do engenheiro, com um sotaque cuja origem lhe fugia o rigor – «algures do Norte, onde os vês escorregam para bês» – não lhe soara nem pior nem melhor que a do encarregado. Era a dele, engenheiro. Como a de todos os do poderoso ofício que tinha conhecido: na normalidade, álgida e distante.
Não se mudam os lugares e os sentidos de lugar com facilidade. José, avezado pela experiência, adaptara-se. A miséria, como a necessidade feita anseio e virtude, entranha-se na alma e desembainha-se nos encontros sem apelo às dores da verdadeira contingência.

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