Do declínio histórico de um serviço de honra

7 horas e 57 minutos. Todos falam. Banzé e mais barulho. Coisa de crianças, dotadas, sobretudo pela manhã, de uma energia insuperável. Que canseira, só de olhar.
Dois minutos passam. A porta abre-se mas nenhum deles faz caso. Uma voz mais grave cobre-lhes a ciranda. «Já cheguei. Vamos trabalhar.» Mais uns empurrões, cadeiras que arrastam, chiando terrivelmente. O costume. Desembravecer aquela gente pela alvorada nunca é tarefa bonançosa. «Vamos lá, compostura, que hoje não estou bem disposto.» Nunca estava, ou assim dizia, pensaram muitos deles. Num sussurro, um mais afoito confirmou: «ainda temos uns minutos que ele não se impacienta tão depressa.»
Dois minutos mais. Ouve-se finalmente um bater de palmas metálico, terminante. «Quero quietude. Não tenho disposição para motins.» Era a expressão que, da sua parte, servia para encerrar a galhofa. «Livros em cima da mesa, página 132.»
O Ganas não estava pelas medidas. Girafa, dois dedos mais alto mas menos atrevido, tinha-o injuriado. Ou melhor, sua mãe e furibundo ficou. Estado que converteu em gesto. Acertou em cheio no nariz de Girafa, que tombou pesadamente. Fora apanhado de surpresa. Depois do toque de sentido não era hábito alguém ousar desobedecer ao Ripas, famoso por impor autoridade com os silêncios que Deus lhe confiara. Silêncio fez-se, mas não o conhecido. Era coisa nova. Devagarinho, uns soluços. Girafa, agarrado ao nariz, tremia. Mas não da dor, coisa pouca. Era da antecipação, filiada no que não sabia. E da vergonha, apesar de nenhum dos outros se atrever a olhá-lo. Ou a rir, como noutras situações teria acontecido.
António pensou imediatamente na urgência de repor a ordem. Os garotos, entre eles, chamavam-lhe Ripas, o que era absolutamente natural. Todos os professores tinham a sua alcunha e a dele até era afectuosa. «O que raio vem a ser isto?», disse num tom deliberadamente áspero. Num assomo de brio, Girafa levantou-se. Sangue dele, sem quantidade para cuidado, escorria. Nada disse. Assumiu pose de formatura, como lhe haviam ensinado. Ganas, até aí na penumbra, não lhe quis ficar atrás. Passo em frente, estacou a seu lado, altivo, sem tenção engrossando a voz: «Ao seu dispor, meu capitão.»
António sorriu sem dar a entender. «Bem, meus rapazes. Resolvem isso lá fora que eu não sou a vossa mãe. Senhor Rui, vá à enfermaria tratar esse nariz que ainda vai precisar dele para muita coisa.» Uma cachinada colectiva ecoou, logo cortada por um simples gesto de crispação do Ripas. Girafa saiu. A porta fechou-se sem grande ruído. «Página 132, meus senhores.»

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O medo não prevalecerá

A história e a moral

Professor universitário