A história e a moral

Mona Lisa LHOOQ, 1919
Marcel Duchamp


Em mil e novecentos e muita coisa, já eu me havia despedido e feito luto dos escrúpulos, estava de núpcias aprazadas. A nubente, sendo de família numulária, tinha tudo, excepto o aspecto, provado sob todos os ângulos, que era de mastronça. Um desastre e peras. Do pescoço para cima avultava-lhe um buço de bradar aos céus. Assim fiz. Com o devido respeito, bradei e veio um anjo. Tinha pinta, o anjo, um Paul Newman mais novo, ainda sem vícios de representação, evidentemente andrógino. Numa fracção de segundos fez o serviço. Retirou-lhe o buço, depositou-o numa balança, pesou-o e comunicou: 50g, é de fechar o coração a qualquer um. Do mais, não posso fazer milagres. Dito isto, desapareceu misteriosamente. Tive um mau pressentimento. Não me fio em quem se põe na alheta sem pedir licença e sem dar ensejo a agradecimento. Não muito crente, torci-me para a noiva, suspenso do benefício. Fiquei para morrer. No lugar do bigodinho, uma fístula extensa, morfeica, a acumular pus, miasmática, quase a pedir efeito pirotécnico. Se mortificado estava, desaustinado fiquei. O vómito cobriu-me as glândulas salivares. Não era para menos. Nem para golpe de misericórdia se conseguia encarar aquilo quanto mais para prazeres mórbidos. Apesar de ter a boca presa pelo alarme, berrei com quantas forças tinha pelo anjo. Berrei, berrei, berrei, berrei tanto que acabou por comparecer para me informar que me devia calar. Ferme ta gueule, mandou, sei lá por que carga d’água em francês. Fez-se a vontade de Nosso Senhor, explicou. O Pai-do-Céu por nada deste e do outro mundo toleraria que eu me tornasse aventureiro ou frequentador de prostíbulos. Tinha outra aplicação em mente para mim, qualquer coisa relacionada com o melhor dos dois mundos – não percebi bem. A blasfémia saiu-me de mansinho: raios-parta, nunca há história sem moral. O anjo abanou a cabeça em sinal de aprovação e, antes de se retirar para parte incerta, ainda me advertiu para tirar da ideia a prima direita do lado da mãe de quinze aninhos e maminhas perfeitas que eu trazia debaixo d’olho. Vais de carrinho. Ai, vais, vais. Foi assim que ganhei o hábito de suspirar muito e de cavalgar em francês a sigla LHOOQ*.

*Experimente o leitor também. O resultado é invariável ainda que variavelmente estimulante: elle à chaud au cul.

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