Das identidades e da identidade homossexual

[Nota prévia: a leitura do presente texto deve ser precedida pela leitura deste aqui, assinado pelo João Galamba]

Num anúncio de televisão surge uma personagem que afirma: agora deixei de ser o João, passei a ser o pai da Ana. A identidade é de facto uma coisa complicada.
Desde logo, como sugere a fórmula publicitária, não temos uma identidade. Temos múltiplas, todas elas relacionais, isto é inscritas em sistemas de diferenças significativas, por regra estruturadas em oposições, a partir das quais se produz o repertório de possíveis identidades vividas. Por exemplo, sem homossexualidade a heterossexualidade não faria sentido, não existiria enquanto topos identitário; o mesmo se dirá de homem sem mulher, de patrão, sem empregado; de pai, sem filho; de jovem, sem velho; professor, sem alunos; português sem estrangeiro, cobarde sem corajoso, boa pessoa sem má pessoa, alto sem baixo e por aí fora. Não há identidade sem alteridade, e não há processo de identificação sem componente de identização.
Mais: tais identidades são fundamentalmente de natureza prática, accionadas de acordo com as solicitações, e urgências da acção, as expectativas das audiências específicas que as pessoas em acto confrontam (compreendendo as expectativas que sobre elas são projectadas). O indivíduo que age como professor, como filho, como empregado, etc., que em situação faz isto, resolve aquilo, se emociona, racionaliza, vê aquela sua identidade prática e não outra confirmada, actualizada no modo como os outros com ele interagem – chamando-lhe professor, tratando-o como filho, empregado, etc.
Diferente é o domínio identitário suscitado pelas perguntas o que sou e quem sou do sujeito que desse modo se pensa a si próprio como objecto de identidade. As identidades, retiradas das configurações identitárias (relacionais) nas quais são (re)produzidas, são então submetidas a um processo de intelectualização. Sem deixar de se radicar na dupla operação linguageira de diferenciação e generalização que caracteriza a produção das identidades práticas, tal processo entre o mais imprime-lhes as propriedades mitológicas do indivíduo, nomeadamente a singularidade essencial de cada um – frequentemente articulada com narrativas (mais ou menos biográficas) do eu.
Quer isto dizer que as identidades objecto de processo cognitivo não existem ou são irrelevantes? Não, de todo. Quer apenas dizer que constituem uma fictio identitária que transmuda as identidades triviais que revestimos no dia-a-dia, obrigando-as a convergir no regime de acção intelectual do eu singular, que opera uma espécie de integração ex nihilo dessas diferentes e dispersas identidades.
A questão complica-se ainda quando se constata que nas identidades que são fabricadas no quotidiano nem sempre há coincidência entre identidade reivindicada e identidade atribuída e identidade desejada e identidade possível. Vejamos, por exemplo, o que se passa com os gays. E não escolho este exemplo por acaso. É porque se trata de um dos casos identitários em que a descoincidência é mais marcada. Um gay tem especial dificuldade em ver a identidade que reivindica e deseja reconhecida. Na classificação heterossexual, dominante, não é o homossexual que existe; antes o paneleiro, o rabo, o maricas, o panasca. De resto, o próprio princípio da (diversidade) da orientação sexual tende a ser recusado pelo entendimento heterossexual. Veja-se que um homem heterossexual raramente se declara enquanto tal. Prefere a fórmula (ela mesmo eufemística) gosto de gajas (ou mulheres), que além de afirmar, ilustra quando pode (basta uma volta pelos blogues para conferir isto). Recusa de um vocabulário, recusa de uma nomologia, rechace das denotações e conotações inclusivas (de simetria sexual) que a conversão política do paneleiro em homossexual procura assegurar.
O corolário desta rejeição – rejeição que mostra bem que as identidades são tanto matéria de significação quanto de poder – todavia não é só preservar uma identidade sexual depreciada, maculada, incapaz de domesticar as palavras feias que a determinam. O sopro destas palavras vai, com efeito, muito além da definição da condição sexual. O maricas não é só o gay, é também o pusilânime; a paneleirice ou a panasquice não é só a conduta homossexual, mas também o comportamento ridículo, grotesco. Quer dizer que tais palavras funcionam na verdade como apontadores transversais de inferioridade que põem em relação de equivalência pessoas e objectos inferiores entre os quais doutro modo não haveria nexo.
Como se não bastasse esta processualidade metastésica, que não deixa de reforçar o estigma directo que a figura construída do paneleiro transporta, o gay enfrenta ainda aquilo que podemos designar por hiper-remissibilidade da sua condição sexual. De modo difuso ela tende a romper inclusive em contextos ou regimes de acção não sexuais. Se gosta de cozinhar, se não gosta de futebol, se se interessa por roupas e moda; se mostra uma enorme disponibilidade profissional; se declina convites para conviver com colegas, se vai ao ginásio e faz musculação, se tem sensibilidade artística, tudo isso e muito mais justifica-se por ser aquilo. Daí resulta que, ao contrário dos heterossexuais, nos homossexuais a orientação homoerótica tende ser uma identidade especialmente preponderante, uma identidade total. Acima e antes de tudo, na síntese tautológica tantas vezes ouvida: são o que são.
Esta é a razão pela qual aliás os homossexuais que assomam à praça pública para incarnar a expressão do grupo, defender os seus interesses, fazer valer os seus pontos de vista, correm um enorme risco. Ao serem levados, pelo efeito de representação política de porta-voz, a hiperbolizar a sua condição, ficam a um pequeno passo (em falso) de se transformarem em exemplos vivos de uma das principais formas através das quais a dominação simbólica que se exerce sobre os homossexuais se manifesta. Justamente serem em todos os momentos e circunstâncias aquilo que são. Com essa aura, pouco podem fazer para neutralizar a apreciação de que o que dizem não passa de conversa de paneleiro, logo inferior, sem importância, ignorável, sem que seja sequer necessário censurar expressamente o discurso por eles produzido.

Comentários

Anónimo disse…
Grande texto, parabéns. Vou linkar. Deixo aqui uma sugestão de leitura mais "descontraída":

http://aforismos-e-afins.blogspot.com/2005/11/o-coming-out-um-conservador-liberal.html
Anónimo disse…
Grande texto, parabéns. Vou linkar. Deixo aqui uma sugestão de leitura mais "descontraída":

http://aforismos-e-afins.blogspot.com/2005/11/o-coming-out-um-conservador-liberal.html
Anónimo disse…
É um ponto de vista interessante.... mas o mundo não é pintado de cor-de-rosa!
Pensa como é estar na pele de um homossexual.... http://confissoesadolescente.blogspot.com

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