Cavaco – o homem que dá o litro para ser do Povo

Não posso deixar passar sem reparo e sem desmontagem o retorno da mistificação das (modestas) origens sociais de Cavaco Silva*. Foram anos a aturar a história da carochinha, reeditada quando se estava à beira de mais uma eleição, do homem do povo, pobre, honesto, humilde e trabalhador, que subiu a pulso e por estrito mérito próprio na vida. Basta. Enough is enough. Cavaco não é, nem nunca foi um homem do povo. Cavaco provém de família pequeno-burguesa (na linguagem vulgar: classe média). É assim oriundo de família relativamente privilegiada – tanto mais que a parcela da sua extracção social era, à época da sua infância/juventude, muito inferior à que hoje representa na sociedade portuguesa. O percurso/trajectória de vida de Cavaco não é tão singular/surpreendente quanto isso. No pós-guerra, em muitas famílias pequeno-burguesas já tinha fecundado a estratégia então altamente rendível de converter os recursos económicos acumulados em capital escolar, investindo fortemente na instrução dos filhos. Cavaco é um produto dessa estratégia pequeno-burguesa, ao tempo virtualmente inacessível aos verdadeiros filhos do povo (operariado, campesinato, rendeiros e assalariados agrícolas, etc.). Cumpriu-a bem. É tudo. Só por pura alquimia política e/ou projecção ideológica se pode pretender consagrá-lo como homem e paladino do povo e do Portugal profundo por oposição às elites políticas tradicionais, burguesas, fechadas, endogâmicas, jurídico-literárias, cheias de si, facúndicas, lisboetas. Dá jeito à visão mitómana do herói social que, vindo do nada, against all odds e sempre com novos e injustos obstáculos pela frente, triunfa, mas é falso.

*Este texto foi redigido na sequência da leitura de um outro em que o autor – o Paulo Gorjão – divulga alguns dados da sua biografia pessoal. Lastimo a co-incidência e, por isso, quero frisar bem dois aspectos: por um lado, não pretendo beliscar a espontaneidade da reacção do Paulo Gorjão – que julgo genuína, não instrumental; por outro, se crítica de fundo lhe faço é a de adoptar e veicular uma versão hiper-simplista (e errada) das hierarquias sociais que considera apenas a distinção entendida como oposição entre elites cultivadas e massas anónimas, ou, na sua própria linguagem: entre a casta aristocrática nascida em berço de ouro e a maioria dos portugueses. A estrutura de classes e as relações entre classes e fracções de classe são muito mais complexas que isso. Paulo Gorjão tinha e tem obrigação de sabê-lo e, por consequência, não aderir e dar cobertura à fábula sociográfica na qual assenta significativa parte da construção da singularidade e da auctoritas políticas (contra os políticos!) de Cavaco Silva.

Comentários

Anónimo disse…
Um bom poste; a nota de roda-pé, exclente!
Anónimo disse…
Pois ... é o mito do "homem do povo" de Cavaco. Faz-me lembrar o mito do salvador de Portugal de Soares, o pai da democracia, aquele que sempre viveu às custas da politica e desse mito. Este sim (Soares) é o homem que Portugal precisa! ahahahahahaah

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