Fora de horas: de volta a Estaline e ao revisionismo histórico

Um artigo de opinião de Leandro Martins no Avante suscitou, aqui há umas semanas atrás, uma sequência de posts, textos e breves ensaios na blogosfera, inclusive na forma de colóquio.
Passado algum tempo sobre os dias de vertigem escrevinhadora, gostaria de tecer algumas considerações sobre o assunto. Cinco, para ser exacto.
1. Embora nos antípodas em muitos aspectos do autor daquele artigo, devo fazer-lhe justiça formal. Boa parte do reparo revisionista implacável e do desdém que recebeu, estribou-se numa incorrecção. O artigo não constitui um albificação da figura de Estaline, pela simples razão de que não é esse o seu objecto. Eu próprio, sem ter ido à fonte, portanto: sem ter lido o artigo (só mais tarde o fiz, e apenas porque o Luís, rigoroso, tratou de linkar o artigo em A Natureza do Mal), fui atrás da espiral condenatória, levando-me a comentar um texto do Filipe Nunes Vicente no Mar Salgado em termos que agora acho despropositados¹.
2. O discurso oficial do PCP, como dizem os militantes comunistas e ainda muitos dos que viveram a condição: o Partido, não tem como porta-vozes apenas o Leandro Martins, o jornal Avante e outros escribas sectários. Ninguém negará por exemplo a Manuel Gusmão uma estatura intelectual e uma capacidade reflexiva admiráveis. Por conveniência de argumento, não se pode fazer de conta que ele e outros não existem. Com as suas intervenções, densificam e complexificam o espaço da enunciação ideológica e programática do Partido Comunista Português.
3. Parece-me em suma que se confere demasiada importância a certos artigos de opinião. Estou certo de que o ora em causa jamais será incluído numa base documental de Estudos Sobre o Comunismo.
4. De tudo o que vi escrito até agora, e vi coisas muito boas, entre as quais destaco o texto do Rui Bebiano em A Noite, o que mais me interessou encontrei-o num blogue cuja existência ignorava, o Água Lisa (2), anteontem extinto para dar lugar ao Água Lisa (3), ao qual cheguei por intermédio do Lutz. João Tunes, o autor, é um ex-militante do PCP. É da e, creio também, com a sua experiência enquanto membro do PCP que examina os impasses e incoerências que fluem na vida interna do Partido da resistência anti-fascista. Essa exposição na primeira pessoa, essa exposição da primeira pessoa dá um toque de testemunho vivo, sentido, que os outros textos que li não possuem – na verdade, não podiam encerrar.
Interesse não implica todavia adesão ou empatia, ou reconhecimento de maior clarividência. A minha reacção, principalmente perante o último texto (de uma série de quatro) publicado pelo João Tunes, é por sinal de ambivalência. Se sou sensível à dimensão amargurada do relato, não simpatizo com o lado de denúncia que a gramática sarcástica final atraiçoa.
5. Quando pensei em escrever alguma coisa sobre o assunto, na altura ainda enturvado pelo putativo delírio reabilitador de Estaline, lembrei-me de uma obra publicada cuja primeira edição data de 1949, Stalin. A political biography, de Isaac Deutscher. Deutscher, talvez mais conhecido pelo magistral tríptico biográfico de Trostki, retraçava com pormenor esmagador e perturbador a carreira política de Estaline, desde a época em que este era um (indiferenciado) seminarista georgiano até aos seus dias de déspota paranóico e assassino sem escrúpulos.
Isso não significa que Deutscher se deixasse enfeudar à visão mais comum, mais cómoda também, que ainda hoje tende a reduzir Estaline à aberração torcionário-sanguinária, equiparando-o a Hitler – a um Hitler hiper-simplificado. Essa comparação era aliás liminarmente rejeitada. Analiticamente marxista, o autor propunha uma visão heterodoxa de Estaline e do estalinismo, descrevendo o ditador como chefe e principal beneficiário duma revolução trágica, que comportava nela própria a sua contradição, mas que se revelou criadora.
Pouco importa de resto se o legado de elementos heterogéneos do estalinismo que Deutscher sugeria – mormente o contraponto entre forte impulso económico e profunda atrofia moral e política – correspondia a uma equação ajustada à situação da sociedade soviética à época da morte de Estaline. Pouco acrescenta saber se a biografia, a biografia do Paizinho, constituirá um bom dispositivo analítico dos processos sociais sobre os quais Deutscher se deteve. A isso tudo se sobrepõe a lição de intransigência intelectual que não cede a afãs simplificadores, sínteses abusivas, decalques de consensos estabelecidos que não se expõem a nem admitem crítica e revisão.
Porventura comunistas mais rígidos virão ao rossio informar (instruir diria) que não se deve dar abono a um homem – Deutscher – que foi expulso do Partido Comunista por se ter tornado um agente anti-revolucionário ao serviço do grande capital internacional. Eu sei isso. Sei também que a História Social da União Soviética – seguramente a que Deutscher praticou – está, como em geral a dos Partidos Comunistas, espartilhada na acção política contemporânea e nas possíveis linhas de clivagem ideológica que essa acção consente. Nada contudo que invalide ler ou reler Stalin. A political biography. Pelo contrário, são aliás dois bons motivos extra para o fazer. Deustscher era um intelectual e historiador engagé, mas engagé acima de tudo com a ideia de verdade científica, por definição provisória.

¹Eis o teor do dito comentário. Talvez o significado seja mais simples (e de certo modo ainda mais deprimente). Já ninguém liga ao PCP, nem o PCP espera que alguém lhe ligue grande coisa. De partido acossado passou a partido geriátrico e patético, incapaz de produzir discurso que não o da mais básica cartilha fabulatória. Cartilha sem qualquer alcance político, ou aspiração a "normalização ideológica". Não suscita reacção, porque é como assistir a um velho decrépito, degradado a protestar verdades inverosímeis. Quem ouve cala por compaixão.

Comentários

FNV disse…
Caríssimo:
Eu não fui levado por nenhum delírio, pude ler o artigo original, embora em versão papel. Neste seu post, afinal, a leitura do artigo não desmente nada do putativo "delírio" opinativo da blogosfera. A única coisa que você conclui é que o Sr.Leandro não é a única voz oficial do PCP . Já sabíamos.
O resto está lá, infelizmente.
Abraço blogosférico
Filipe Nunes Vicente
Afonso Bivar disse…
Caro Filipe,
eu não atribuí qualquer delírio ao resto da blogosfera, muito menos a si. Delírio, sê-lo-ia se alguém retomasse a velha retórica (na verdade, "czarista") de "endeusamento" de Estaline. Ora, e neste post faço disso mea culpa, sem ler o texto do sr. Leandro, imaginei que fosse disso mesmo que se tratasse. Não é. Eventualmente objectar-me-á que "o que está lá" é o possível nas circunstâncias actuais. Que não era pois viável dar outra forma "comunista" à albificação de Estaline. Talvez, mas não consigo deixar de relevar o facto de o autor do artigo em nenhuma passagem recorrer aos conhecidos emblemas da glorificação de Estaline ("grande revolucionário", "génio militar", "continuador da obra de Lenine" e por aí fora). Além de que, importa não olvidar, quando menciona Estaline, fá-lo à conta da "denúncia da denúncia gorbatcheviana". É esse o seu objecto. Por isso fiz questão de lhe fazer "justiça formal" (que não outra).
De fundo, aliás, a minha questão transcende este âmbito restrito. Com este texto tratei de me interrogar e interrogar quem me quisesse ler/acompanhar acerca da maldição intelectual que pesa sobre o nome Estaline. Não suscitará este uma densidade simbólica de implicação emotiva que entrelaça automaticamente o espectro dos crimes horrendos que cometeu? A ser assim, a ser especialmente difícil repelir a denotação, em rigor: a topologia criminosa, isso pode funcionar como obstáculo à análise e compreensão do estalinismo. Para mim, este ponto é seguramente mais importante do que discutir as intenções mais ou menos branqueadoras do sr. Leandro.
Um abraço.

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