Do Principe

Muito me separa do Pacheco Pereira. O posicionamento político é aliás quase um pormenor de somenos. Clivam-nos opções estéticas – pouco me diz a orbe de objectos que povoam o cibório virtual do Pacheco Pereira, o Abrupto. Dividem-nos opções literárias – francamente, ao contrário do Luís Carmelo, inclusive acho que a escrita no Abrupto carece não direi de virtuosismo literário (não se justificaria) mas de alguma elegância, feição. Segmenta-nos o perfil público – ele desfruta de notoriedade que provavelmente nunca conhecerei. Distanciam-nos por fim, talvez o mais importante de tudo, as referências intelectuais-científicas (no sentido mais amplo). Aqui alongar-me-ei.
Encaro com grandes reservas o género de historiografia entre o positivista e o normativista (as supostas lições da História) que o Pacheco Pereira pratica. Reajo quando o vejo ser peremptório e mesmo sobranceiro a construir libelos contra terceiros ou terceiras perspectivas a cobro da impunidade (ou do não-contraditório, como agora se diz) de que beneficia no espaço mediático. Aí participa sistematicamente em painéis onde primam a agnosia e a insipiência (retórica) dos restantes membros, geralmente políticos puros, nunca sendo pois confrontado com eventuais fragilidades das suas teses. Desagrada-me especialmente quando, nesse contexto, sem cuidar de um mínimo de fundamentação, por exemplo, classifica como inanes e paupérrimas todas as análises que não procedam da profundidade das instituições históricas, como a Igreja, para compreender o mundo em que vivemos; ou quando invoca, sem mais, a questão civilizacional, os valores do Ocidente, transfigurando o que poderia ser um dispositivo analítico num mero conteúdo formal que, na minha percepção, outro valor não tem que expediente de arremesso político conjuntural. Perturba-me, no balanço, a encenação (admito que não consciente) em torno da figura do alienígena, do homem de fora.
Muito me afasta portanto do Pacheco Pereira. E todavia…
E todavia gostaria de o contar entre os meus leitores. Gostaria de a espaços cotejar e contrapor ideias com ele. Foi aliás uma das pessoas – não muitas – a quem enviei um e-mail de convite para visitar o bombyx mori. Não sei se alguma vez o fez. Se o fez, não deu sinal de vida. Está e estará no seu pleno direito de ignorar o meu casulo e não me merecerá qualquer gesto rancoroso de despeito ameninado.
Talvez algum leitor mais atreito a interpretações impetuosas, diria: abruptas, veja neste post a ilustração duma flagrante contradição nos termos. Dirá que comunico que não me entregarei a meneio ressentido e todavia consigno boa parte do texto a atacar o Pacheco Pereira. Nada mais adulterino. Não se trata de investida hostil. Trata-se de sublinhar planos de clivagem/afastamento e de crítica, no capital, à figura, que o Pacheco Pereira corporiza como poucos outros, do intelectual-mediático ou, com mais propriedade: televisivo, que impera à conta do conhecido aforismo em terra de cegos quem tem um olho é rei. Crítica como espaço de argumentação de que não abdico. Alguns dos bloggers que quiseram ter a gentileza de me linkar, sabem bem que é princípio em que não cedo.
De resto, a crítica que acima esboço furta-se propositadamente à avaliação do Abrupto, dos seus conteúdos, com excepção do uso que ali se dá à língua portuguesa. Fujo como o diabo da cruz da lógica normativa que faz da crítica um momentum de dever ser, e especificamente um dispositivo que se alavanca num arquétipo (a impor) de blogue, acompanhando neste ponto o Luís Carmelo e o José Pimentel Teixeira.
Percebo a dissidência reactiva do Pedro Mexia, num estimulante texto sobre o Pacheco Pereira e respectiva concepção instrumental do Abrupto. Quando o Pedro Mexia afirma que o Abrupto, mais que um blogue, é a homepage de Pacheco. E vive da quase total rasura do que é pessoal; e adiante acrescenta: o que me choca é que, para Pacheco, um web log, sucessor civilizacional dos diários, deve combater o eu, ou melhor, essa «pegajosa circularidade do eu», como lhe chama, parece-me, entre o mais, reagir ao facto de Pacheco Pereira capitalizar a sua existência lá fora (espaço mediático) para cá dentro (blogosfera) reivindicar um ascendente e uma tutela morais, os quais, por seu turno, abrigam um modelo ideal de blogue que censura e mesmo rejeita a subjectividade, já para não falar de uma tácita (hermenêutica da) suspeição que faz recair sobre a comunidade blogosférica.
Não é todavia por aí que vou. Do meu ponto de vista, um blogue só tem de ser aquilo que o seu autor quiser que seja, inclusive, nos limites, tanto logro e simulacro de personas, subjectividades com as quais não se identifica ou pouco tem a ver como repúdio total de quaisquer abordagens e exposições pessoalistas, intimistas.
Se há crítica que insisto em fazer a Pacheco Pereira é a de que ele é exímio a gerir recursos de raia e duplos posicionamentos. No essencial, na blogosfera Pacheco Pereira replica o concentrado de atributos, o património singular que o distingue na televisão e na política. É o intelectual, o académico, o historiador, o espírito livre, não dependente de redes clientelares. Em suma: o desalinhado, o político e blogger diferente, quase a contrario, e nem é necessário ter lido O Príncipe, que o Pacheco Pereira amiúde cita, para perceber quão dentro ele afinal está, quão sujeito está à demonstração do primus inter pares. Lembre-se Cavaco, ou o mais eficaz de todos: Salazar. Porventura de modo menos sofisticado e desdobrado em vários tabuleiros, mas valendo-se ambos do mesmo princípio de auctoritas: o homem de fora, não comprometido com a podridão, com a mediocridade, com a malha de favores interpessoais.
Ontem, dia 5 de Maio, no Abrupto surgiu um excerto de texto publicado alhures por Pacheco Pereira. Amara-se em Veneza, invocando, entre outras convergentes, a Veneza de Thomas Mann, sobredepurada através do óculo (visual) de Visconti. Não concordo com tudo o que diz, da personagem de Von Aschenbach, da cidade e sua aura. Pouco importa. É uma dupla evocação que me toca muito. Muito nos aparta. Não tudo. Ontem o Abrupto fez dois anos.

Comentários

cbs disse…
Admiro o Abrupto, considero-o mesmo um modelo (um dos possiveis).
Também gosto do Bombyx, e acompanho nalguns aspectos as suas crítica ao Jpp.
No entanto vejo nele integridade e transparencia; serei talvez mais tolerante com o maquiavelismo que lhe atribuí (e que reconheço).

Mas olhe que hoje vim cá parar via Abrupto.
Afonso Bivar disse…
cbs, eu queria afastar-me do terreno "lodoso" da personalidade e da idiossincrasia (nem sequer vejo o JPP como pessoa "maquiavélica"). Pelos vistos não consegui, ao menos totalmente. Acho que ainda terei de escrever mais qualquer coisa sobre o assunto. Agora não tenho ânimo; amanhã suspeito que me faltará tempo. A ver vamos quando será.
cbs disse…
Só um esclarecimento.
Quando empreguei "maquiavelismo" não foi no sentido pejorativo corrente, e sim de um certo pragmatismo e de intencionalidade política, por vezes não evidente.
Apenas.
Diferentemente do que "corre", não vejo "O Principe" como um manual do Mal, mas como o prenuncio da Modernidade.
Foi este o sentido que dei ao seu comentário.

Um abraço
Anónimo disse…
O que eu admiro ainda mais é a paciência de JPP!

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