Conversa de Zé Bastos

Lutz. Mas nem em português nem em alemão temos palavrão que remotamente se acerque do motherfucker. A bem dizer, nem no inglês BBC.
Na verdade, Lutz, aquilo para que quero chamar a tua atenção é que não podemos supor o significado universal das palavras dentro dos seus idiomas – precisamente o presuntivo que permite desenvolver o exercício comparativo a que te entregas – sem realizar a operação artificial de privilegiar as definições legítimas, oficializadas, dessas palavras em detrimento do seu sentido de uso corrente nas trocas linguísticas que ocorrem todos os dias. Dou um exemplo, situando-me na esfera reconhecida dos palavrões, se quiseres: das obscenidades.
Não podemos restituir o sentido do vocábulo cabrão sem observar, melhor dizendo: determinar o quadro em que é empregue. Tanto pode significar insulto, injúria, vitupério (o adepto que berra: o árbitro é um cabrão), como manifestar afecto, ternura, implicação (em reencontro de amigos: é pá, há tanto tempo que não te via meu grande cabrão), ou até adensar-se em ambiguidade, no caso de ser dobrado de marcador irónico (em avaliação de competência: a arte daquele cabrão é deliciosa).
Por outras palavras, a heterogeneidade semântica é intrínseca à língua. E para que a compreensão não fique incompleta, é necessário perceber que essa heterogeneidade semântica por seu turno alinha com outra: falo de uma diversidade socialmente radicada. Há pois uma dupla regressão que te falta. Pomposamente: uma economia política das trocas linguísticas.

Comentários

lb disse…
Ao aprender a segunda língua apercebi-me que o significado das palavras não é "discreto" como os matemáticos dizem, mas que lhes perteçe um campo de significado, cujas margens são esfumadas. E que os campos de significado de palavras dados como traduções em línguas diferentes não se sobrepõem completamente. E mais, o que o teu post me fez ver: Se desenhassemos um mapa de significados, víamos que há frequentemente mais do que um campo de significado para uma palavra, que podem estar muito afastados uns dos outros.
Afonso Bivar disse…
Lutz. Vi o teu comentário e o teu novo post. Tentei afixar um comentário na tua caixa, mas surgiu-me uma mensagem inesperada comunicando-me que o meu ip estava na "lista negra", impedindo-me em consequência de comentar. Fica aqui a pequena observação que originalmente se destinava ao teu post de hoje, dia 24, no Quase em Português.

É verdade que a “boa fé”, como a “má fé”, faz toda a diferença. Tens razão e mais razão ainda em lembrá-lo a propósito de alguns supostos “diálogos” que ocorrem na blogosfera. Todavia, a “boa fé” tem limites. Por vezes, a comunicação falha, a atenção torna-se oblíqua, a retradução cava um fosso irredutível pura e simplesmente porque os esquemas cognitivos, intelectivos em presença são por assim dizer “incompatíveis”. Produzem com e sobre as mesmas palavras significados radicalmente (ou pelo menos acentuadamente) diferentes. Nessas circunstâncias nem a “boa fé” pode superar a barreira da “não concorrência de sentido.”
blimunda disse…
que é como quem diz: alhos e bogalhos. mas isso diz o povo...

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