Filia(ção)

Com mulheres experimentadas (e noto que faço recurso deliberado a vocábulo polissémico), há uma questão que paira e mais cedo ou mais tarde vem à baila. Cada uma inquieta-se que o homem, o homem que deseja, a tome por moça perdida na insânia do sexo, galdéria sem remissão, o oposto da sonsa desenxabida, freirática.
Pessoalmente, não me cai da cabeça nem nas primeiras nem depois que seja essa personagem frenética. Regra geral, tanto quanto percebo, por norma a mulher, por forja cultural, por resposta ao princípio da dominação masculina de que também é intérprete (lá voltarei), tem na linha do horizonte uma conjugalidade amorosa, porventura impossível de cumprir, que não se congraça com radicalidade experimental em matéria sexual, a jeito de encarar os machos da raça humana como carne para canhão, a jeito pois de se dar a alta rotatividade.
Mas, acaso rompa a norma e seja de facto personagem com esse historial, ou essa prática reiterada? Torná-la-á menos notável, mais censurável? Uma megera? Uma ninfomaníaca calejada a precisar de absolvição pela sua vida pecaminosa? Era só o que faltava. Eu, falo por mim, não tenho o direito de julgar. Nunca me arroguei o papel de inquisidor da moral e bons costumes. Que haja fodido n gajos e respectivos duplos, participado em orgias, consumado impulsos homoeróticos e o mais relacionado, tanto se me dá, ou melhor: não tem que se me dar. Quando muito, teria alguma inveja, pela capacidade de reptar os limites da sexualidade convencional, de trama falocêntrica.
Eu sei que é indomável a tentação de construir uma fachada de apresentação. Digo: Senhora que me lê, não tenha receio de escandalizar. Digo também: não tem que contar tudo. Hoje, amanhã, sempre: guarde para si o que for de guardar, de se proteger ou de proteger. O afecto em geral, o amor, a amizade, não têm que se condenar a uma hiperbolização da verdade.
Vem isto por si e a propósito de um tema quente, a orbitar na blogosfera masculina, definido pelo Pedro Mexia como ninfofilia. Salvo melhor informação, começou n’A Praia e já aportou pelo menos aqui e aqui também. Intrometo-me porque, para lá das consonâncias e discordâncias que os textos publicados me merecem, julgo que falta ao bate-boca um ponto fulcral.
Com efeito, o debate que se concentra em exclusivo no culto sublimado de adolescentes (não por adrego pensados exclusivamente no feminino), seja ou não enquanto parafilia, ignora ou pelo menos tende a negligenciar que o sentido dessa veneração se encontra não nela própria mas num sistema relacional de diferenças/oposições pertinentes: jovem e adulta; inocente e madura; pura e impura; imaculada e feita; ingénua e entendida, inocente e pecadora; positivo e negativo; grandeza e pequenez e por aí fora.
De resto, esta tese é de certo modo comprovada nas ideias e representações que emergem no próprio debate que vem tendo lugar na blogosfera. Para o Tulius, o contrário da adolescente apetecível é precisamente a mulher madura, nas suas palavras: feita. O seu equívoco está em pensar estoutra como coisa de natureza intrinsecamente autónoma, delindo que os dois estados antitéticos da persona feminina que codifica são ambos produto de uma única constelação semântica, de um único sistema de classificação. Perguntar-se-á simplesmente: o que seria da ninfeta objecto do desejo sublimado masculino sem a mulher feita e vice-versa? Seria, ver-se-á, inidentificável, de facto inexistente. O Bruno, por seu turno, baralha os dados, mas para apontar uma complexificação da topologia do capital erótico feminino (mulheres maduras que ostentam signos de jovens, infanta que precocemente antecipa traços de maturidade), deixando também sem o devido ressalto aquele sistema de força classificativa centrípeta.
O ensaio de regressão analítica não é todavia suficiente se ficarmos por aqui. Para se completar o ramalhete há que associar aquele sistema ao princípio da honra masculina que está na base da dominação de género. Dominação especialmente eficaz porque a maioria das mulheres, ao acautelar a sua dignidade feminina, acciona o princípio heteronómico da honra masculina. No meu entender, é este princípio, indissociável da libido masculina, uma libido de posse, que sujeita tanto a representação da mulher madura como a da jovem adolescente, e os jogos de simulação de atributos desenvolvidos a partir dessas polaridades ou lugares onde as oposições mais se vincam. Na verdade, ambos os lugares femininos respondem simbolicamente ao imperativo de uma honra arcaica que se dirime parcial mas decisivamente na virtude feminina, a castidade/pudidícia, primeiro na forma de virgindade, depois na da fidelidade.
Numa época em que, parafraseando o Pedro Mexia, a virgindade está em extinção, suposta vox populi, há razões masculinas acrescidas para colocar no altar do desejo a lolita. O magnetismo contudo não residirá tanto nela quanto na preservação da integridade da honra do homem. Com efeito, com a vulnerabilidade em fundo da banalização da perda precoce da virgindade, a ameaça à honra masculina só pode ser inteiramente aplacada nas adolescentes nas quais é interdito tocar, impoluíveis por posse física. A pulsão para a apropriação simbólica, fantasiadora, da jovenzita virginal, transubstanciada na sua inacreditável atractividade, será assim uma disposição libidinosa atomicamente informada pela honra masculina.
Acresce que na agitação da ninfofilia, no seu aparato público, na multiplicação das suas difusas materializações, não vai só uma atracção por uma adolescente enquanto fantasia sublimatória, que é, bem vistas as coisas, no fundamental récita da honra masculina. Vai também um espelho modelar que compulsa a mulher com experiência sexual, a mulher feita e entendida, a mulher que não mais é virgem, já possuída fisicamente, a defender a sua honra específica (derivativa, secundária) na fidelidade. Fazendo-o, agencia a honra matricial, a masculina, que assim se conserva. Não por acaso, é, como acima reportei, justamente essa mulher de virtude (masculina) que a maior parte das mulheres quer ser.
Senhores à conversa: acham isto demasiado rebuscado? Então comecem por aqui. Respondam à pergunta que aponta às vísceras: seriam capazes de reproduzir sem hesitação, sem hipocrisia, sem querer alijar o sarro do macho denunciado, a posição que exprimi acima acerca da mulher dada a aventuras sexuais? Evidentemente não vos peço qualquer espécie de auto-psicanálise. Um exercício à maneira da maiêutica socrática chegará.
Notarei, para concluir, que mesmo a perspectiva do homem que não cobra nada, que se está marimbando para a carreira sexual da mulher, pode ser encarada como rendilhado transigente. A transigência que só um homem poderia empregar. Ainda a expressão, mais mitigada mas não menos activa e consequente, duma relação assimétrica de poder simbólico clivada no género. O poder de classificar, de dizer o que é e como pode ser a mulher. O poder enfim de absolver, de tirar o peso de cima.

Comentários

blimunda disse…
olha, tenho acompanhado esta conversa e digo-te que esta foi a opinião mais séria e que mais contribui para a *discussão*. aplaudo a tua lucidez...
Anónimo disse…
Tarzan!
Anónimo disse…
Agora a sério: concordando com o que disseste, mas pondo a coisa de modo inverso, creio que a mulher "mil vezes possuida" coloca o homem na contingência de se confrontar com os fantasmas dos homens anteriores, ou seja, com a ameaça de "perder" na relação com as expectativas que sobre ele se exercem. Aqui, como em múltiplos outros assuntos, a ideologia falocêntrica abate-se igualmente - e por vezes com desmesurada violência -, sobre a putativa figura dominante.
Afonso Bivar disse…
Blimunda. Agradeço o cumprimento. É uma tentativa de recentrar o debate. Mas não tenho a pretensão de o fechar. Para uma verdadeira "economia política
dos signos do desejo" falta muito. Com a minha incursão, o que fiz foi apenas abrir a outra problemática, creio mais fecunda.
Anónimo. Perfeitamente de acordo. Para os homens que se dispõem a romper o primeiro círculo de rejeição. Como bem indicias, a dominação também se exerce sobre eles. Vê lá se arranjas uma identidade virtual, que, de futuro, te distinga de outros anónimos que possam aparecer por aí. Confiar no perfil estilístico nem sempre dá bom resultado.
Ricardo Manuel disse…
Este debate parecia-me demasiado brincalhão e irresponsável até lêr este magnífico post! Finalmente foi focado um ponto crucial: a Honra masculina. Uma honra que só pode defender quem tem, ou seja, um homem que tem pouco respeito pelas mulheres (e são a maioria) não merece uma mulher superior, seja no plano da castidade, seja no plano da fidelidade.
Ricardo Manuel

Mensagens populares deste blogue

A história e a moral

Professor universitário

Errata