De clérigo polaco a Papa popular - continuidade, anacronismo, retrocesso

Nota preambular: este é um longuíssimo post (excedendo largamente o que, mesmo nos momentos de maior verbosidade e facúndia, se pratica nesta casa). Em rigor, é mais um ensaio do que um simples post. Insere-se num debate com a Ana Cláudia Vicente sobre o Papa recém-falecido e o conteúdo do seu demorado pontificado – para os textos anteriores, ver aqui e aqui. Ela é católica, eu não; nem sequer sou cristão. É assunto sério. Não se concilia com larachas e dichotes fáceis, ou meia dúzia de frases e slogans tirados apressadamente da cartola. Quem não se interessar pelo assunto, ou não tiver paciência para viveiros de discussões complexas, ignore este post. É um enorme favor que me faz. Não ficará enfastiado, reduzindo-se a probabilidade de não (lhe ocorrer) voltar a navegar para esta paragem.

Venho aqui finalmente dar sequência a uma polémica (no sentido mais nobre do termo) com a Ana Cláudia Vicente sobre o pontificado de João Paulo II. As exéquias fúnebres já lá vão, não tarda há novo Papa e portanto não há razão para prolongar o período de nojo que há cerca de quinze dias atrás disse entender respeitar.
Por razões de economia de argumento, e nalguns casos de falta de informação, não vou responder ponto por ponto, numa lógica de metódica contra-dicção. Prefiro combinar diálogo com aprofundamento da minha perspectiva crítica do rumo que o primeiro-pastor recém-falecido imprimiu à Igreja Católica.
Tentarei evitar construir a minha apreciação do último papado com base na dicotomia pessoa versus Papa; ou subsumindo-a na antinomia classificativa boa pessoa versus mau Papa. Creio que é um mau princípio de análise, que inquinaria fatalmente o trabalho que me proponho realizar de alguma interpretação/restituição da acção histórica de Karol Woytila enquanto primaz guardião católico dos evangelhos.
Abro com quatro pontos prévios (ou nos quais o colóquio com a Cláudia é mais óbvio). Os três primeiros retomá-los-ei adiante.
O primeiro respeita à distinção entre Igreja, Santa Sé e Estado do Vaticano que a Cláudia suscita. Honestamente, não me parece que este desdobramento (o catolicismo tríplice) faça sentido (prático) para a generalidade dos católicos. Parece-me, ao invés, uma abstracção académico-intelectual, de circulação restrita a certos meios católicos, simultaneamente mais instruídos e reflexivos (permitindo ademais salvaguardar a fé das fragilidades da condição humana e das suas vivências institucionais).
Com efeito, olhando para a prática e o ethos que nela se matiza dos membros da Igreja (daqueles que se reivindicam católicos), não creio descabido afirmar que, predominantemente, se há manifestações de percepção de clivagens, elas passam muito mais por divergências paroquianas em torno dos signos e objectos de culto, opondo padres e populações específicas. E vou mais longe: não raro esses conflitos inclusive denotam a particularização das modalidades da liturgia católica tal como elas são de facto experimentadas. É com a apropriação material e simbólica de imagens de Santos e Nossas Senhoras em epígrafe que por norma a conflagração estala.
O segundo ponto preliminar refere-se a parte da contra-prova que a Cláudia aduz para cassar a regressividade (e, não há que temer a força de certas palavras: reaccionarismo) que imputo a João Paulo II. Quero ressaltar dois aspectos: de um lado, um consenso. A Cláudia nem fez menção de infirmar (refutar) que na Polónia prevalece um catolicismo anacrónico, pouco elástico, nada favorável à renovação e ainda menos desperto para lógicas ecuménicas; do outro, uma confusão. Eu nunca afirmei que Karol Woytila fosse um integrista polaco; apenas realcei uma dada seminalidade eclesiológica que nunca o abandonou. Isto não é incompatível com um afastamento relativo da res sacra polaca, induzido pela sucessão de papéis clericais que foi interiorizando. Tais papéis com certeza não tiveram um efeito tão-só formal. Reverteram em esquemas de pensamento, percepção e acção.
O terceiro ponto concerne a indeterminação (hesitação) perante a polis. É a própria Cláudia que salienta que a tríplice realidade da Igreja Católica existe na cidade dos homens, não na de Deus. Se é assim, pergunto: como estabelecer a fronteira, além da qual se extravasa para (ou invade) as esferas da ideologia (strictu sensu) e da política? As omissões e a própria definição de tal limite acaso não terão também cariz ideológico e político?
O último dos pontos prévios é de índole factual. Quanto aos ditadores com os quais Karol Woytila entreteve amenas cavaqueiras, mormente em recepções não oficiais, são substancialmente em maior número do que o indicado pela Cláudia (não apenas quatro). Além disso, explicar-me-á quem souber por que razão João Paulo II interveio de modo aliás pouco discreto no affaire Pinochet. Por que motivo veio a terreiro solicitar uma espécie de habeas corpus, quando Pinochet foi interdito de deixar o Reino Unido, enquanto as autoridades judiciais britânicas decidiam o que fazer de um pedido de extradição para Espanha exarado pelo juiz Baltasar Garzón? Há muito que o decrépito senador, celerado por julgar, desconfio: impune até ao fim dos seus dias, não presidia aos destinos do Chile.
Não seria difícil coligir matéria fáctica se o objectivo fosse zurzir na figura do Sumo Pontífice da transição milenar, emprestando-lhe incontestável pigmento político. Não olvido o cismático (e execrável) Marcel Lefebvre, a meu ver excomungado não pela heterodoxia mas por ter directamente desafiado a autoridade papal. Mas isso não extirpa o contraste entre a severidade endossada por Karol Woytila a teólogos que quiseram cuidar da Cidade e dos seus mais humildes (Boff e outros), e a sagração (beatificação e inclusive canonização) de figuras como o cardeal Schuster ou, mais recentemente, Josemaria Escrivá de Balaguer, além de fundador da Opus Dei, partidário e apoiante do regime franquista aqui ao lado em Espanha.
Como digo, não é esse tipo de libelo que pretendo organizar. Interessa-me bem mais fundamentar a ideia de que se tratou de um papado não conservador, como alguns, a meu ver erradamente, insistem designar, mas retrógrado, diria mesmo: anacrónico.
Por razões mais de ordem analítica que outra qualquer, situarei a fundamentação em dois planos: o da moral pessoal e o das formas da fé (não encontro melhor expressão).
Vejamo-los separadamente, começando pelo da moral pessoal.
Como a Cláudia parcialmente indica, neste plano, toda a acção pontifical e pastoral do Papa vindo do Leste ficou marcada por uma intransigência absoluta em matérias consideradas intrínsecas à inviolabilidade da Vida. Aí radicou a reiterada oposição aos métodos contraceptivos não-naturais (en passage: alguém me há-de explicar o que tem um termómetro de natural), logo aos métodos de planeamento familiar, logo ao uso de preservativos (e não é possível ignorar a deplorável campanha conduzida pelo Vaticano há sensivelmente dois anos atrás propalando a putativa porosidade dos preservativos ao vírus da SIDA). Aí arreigou-se também a aversão e descarte liminar de todas e quaisquer práticas abortivas.
A inflexibilidade não se cingiu porém ao orbe da Vida. Do divórcio, passando pelo celibato do clero e pela não ordenação de mulheres – reproduzindo o ascendente masculino e a sua implícita misoginia –, até à homofobia, tentando reavivar teses médicas há muito superadas sobre a morbidez da homossexualidade, não houve um milímetro de revisão, mudança ou modernização de posição em qualquer desses domínios. Pelo contrário, muito pelo contrário.
Para além do sofrimento, com enormes angústias e aflições, totalmente desnecessário (exigindo sacrifícios de recorte medievo ou culpa insanável), que essa rigidez trouxe a incontáveis crentes, no caso da autista e obscurantista resistência ao recurso ao preservativo, lamento dizê-lo, mas di-lo-ei com todas as letras e ênfase: a bússola papal foi literalmente criminosa. Não saberia o Papa que em muitos lugares do planeta – e não forçosamente remotos e recônditos – muitos padres recorrem ainda hoje ao espectro punitivo do Velho Testamento para conformar os seus rebanhos à norma católica? Que lhes acenam com flagelos e martírios no além-mundo, que os advertem que o acesso ao Paraíso lhes será vedado acaso desrespeitem a regra de Cristo no verbo do sucessor de Pedro? Eu não acredito que desconhecesse. Mas mesmo dando o benefício da dúvida, tamanha opacidade, homiziada em exclusivo no Credo e na Oração, é incompreensível e inaceitável.
É absurdo falar a propósito disto tudo de mentalidade e dinâmica retrógrada? Francamente, até me parece transgredir por moderação.
No segundo plano, o das formas da fé, o que caracterizou a administração de Karol Woytila? A recrudescência da veneração mariana, à Virgem – aliás, um teólogo africano cujo nome não recordo de momento foi excomungado por Woytila por ter questionado a virgindade de Maria –, do culto dos anjos, uma no mínimo ambivalência em relação a vetustas práticas exorcistas e ao estigma como sinal divino. Em paralelo, investiu contra o laicismo e a laicização das sociedades (políticas) modernas como nenhum dos seus antecessores mais recentes, procurou anatemizar os não crentes, ateus e outros especímenes, dando todos os indícios de não se satisfazer com nada que ficasse aquém de um mundo de beatos virtuosos. Ainda sob o consulado de Karol Woytila bateram-se todos os recordes (quantitativos) de beatificações e santificações (pelo menos no séc. XX). O reconhecimento/autentificação de milagres sucedeu-se a velocidade vertiginosa.
Entronca isto no primeiro dos pontos prévios que abre este texto. De facto, a esteira que João Paulo II abriu à Igreja Católica – aparentemente modernizando-a –, foi neste aspecto muito ao encontro de modalidades localistas e particularistas de experiência da fé, especialmente ligadas ao mundo camponês. Profundamente enraizadas na história, e, é bom esclarecê-lo, em arcaicos ritos religiosos gentios (pagãos), essas modalidades têm na apropriação material e simbólica de imagens de Santos e Nossas Senhoras, que protegem à vista os paroquianos que a elas se dedicam, a sua principal instância de sentido. Falamos pois de uma fé que incorpora na crença uma fortíssima componente instrumental, utilitária. Uma fé bem telúrica que anseia contrapartida em vida – que Nosso Senhor, a Virgem, uma qualquer santinha proteja o negócio, os filhos, acuda na doença, nos sarilhos, no êxito do clube de futebol, como antes escudava as sementeiras e evitava a fome.
Karol Woytila aproximou a praxis do alto, fechada, hermética, preservada na dogmática e na doutrina da mundividência e da pulsão (conatus) do comum dos fiéis, do catolicismo corrente dos leigos, ou melhor: de certos segmentos destes. Daí justamente o seu êxito e o entusiasmo que gerou. Na minha perspectiva, a popularidade do falecido Papa assentou em grande medida no facto de ter protagonizado uma deriva da fé cristã que em loquela política se designaria de populista. É certo que democratizou a Igreja, mas à custa da recuperação e oficialização de uma mentalidade nem sequer mística, mas mágica, em que a crença recicla em crendice e em superstição, que confia, muito para lá do descanso eterno (libera me de morte eterna), a resolução dos problemas quotidianos (práticos) à intercessão divina.
Estou persuadido de que não se deve ver nesta convergência o produto de uma manipulação conspirativa ou de uma (respigada e ardilosa) realpolitik (uma pragmática) tendente a alargar o campo de influência religiosa e política da Igreja Católica a territórios e populações de tradicional fraca implantação católica. Tal convergência, no meu entender, simultaneamente decorre e revela uma outra realidade, e volto novamente a um dos meus pontos prévios, de resto já aflorado em post anterior. Como homem de fé, Karol Woytila transportou para o exercício performativo do ofício de Santo Padre muitos dos elementos cardinais do ethos católico da sua nativa, rústica e religiosamente hiper-reactiva Polónia. Não afirmo uma total imunidade e impermeabilidade a todos e quaisquer outros topos, ao longo do seu percurso até ser entronizado, e posteriormente no lugar de Papa. Defendo apenas que a matriz sedimentada na origem permaneceu com ele até ao fim dos seus dias, vertendo para a sua praxis pontifícia.
Também aqui há pois todos os motivos para classificar o seu pontificado de retrógrado, regressivo, anacrónico, muito mais que conservador. Resgatou para o núcleo das formas legítimas da fé, das suas manifestações litúrgicas, configurações de fé que não andarei muito longe da verdade definindo-as como arranjos de geometria variável de elementos excêntricos à mensagem de Cristo com outros dimanados da crispada Contra-Reforma.
Perto do fim, retomo a questão aberta no meu terceiro ponto prévio, para mostrar como é selectiva a separação das águas entre o religioso e o político-ideológico tentada pelos guardiães da fé cristã, mas também para revisitar criticamente um dos principais méritos que têm sido apontados a Karol Woytila, a saber: promover o diálogo ecuménico, particularmente entre diferentes e historicamente desavindos credos cristãos.
Recentemente, julgo que no ano transacto, João Paulo II, abordando o tema delicado da diversidade nacionalista espanhola, declarava assertivamente que essa pluralidade não ameaçaria a Grande Espanha, pelo contrário enriquecê-la-ia, na condição de [continuar a] assentar na fé [católica] comum. Para quem conhece um pouco, não mais que um pouquinho da história da Espanha do Caudillo, esta formulação é, no mínimo, de uma extrema infelicidade. Ao contrário do Portugal de Salazar, em que as relações entre o Estado, o próprio Salazar portanto, e a Igreja Católica foram marcadas por tensões e desconfianças assinaláveis (por exemplo, Salazar sempre se opôs a que a Igreja tivesse uma Universidade), em Espanha não. Franco construiu com o beneplácito da hierarquia católica espanhola, uma ideologia nacionalista em que o espírito espanhol se cimentava precisamente na fé católica comum. Estado franquista e Igreja Espanhola funcionaram, com efeito, como baluartes recíprocos. Não tenho dúvidas de que o postulado do Papa, seria e por certo será replicado, sem indecisão, por qualquer neo-franquista. É a mesma semântica; é mais que isso: um enunciado tirado quase a papel químico da axiomática franquista. Estas injunções bastariam para reprovar e rejeitar energicamente o ponto de vista papal. Creio porém que se deve ir além dessa censura em certo sentido secundária e ver em tais palavras mais que simples mal-andança circunstancial (ou justificá-las com a idade avançada e a degradação física e intelectual do ser humano).
Fica desde logo claro que, naquela que era a concepção de Karol Woytila, a fé católica reveste conteúdo político. No seu entendimento, é ela a seiva (ideológica) da instância política estável, duradoura, sólida. O corolário é que a raia entre o religioso e o político-ideológico se modula ao sabor dos interesses (políticos) em jogo. Nuns casos esbate-se e até chega a ponto de se diluir; noutros reemerge com atroada, na irredutibilidade e indissolubilidade recíproca dos dois mundos. Falta dizer que, no papado de João Paulo II, fora da produção encíclica, os primeiros casos tenderam a coincidir com consensos e doxas associados à direita política e os segundos com cosmovisões de esquerda.
Esta não é todavia a única interpretação complementar que as palavras dirigidas por Sua Santidade (como disse a espigadota Ana Drago) a Espanha merecem. Nelas é possível ainda divisar uma reduzidíssima indulgência perante a diferença e a diversidade. Há uma normatividade implícita naquele discurso que reduz o mundo estimável ao de esteio católico. Toda a ordem simbólico-cultural exterior ao catolicismo é enjeitada.
Se não estou errado, o seu pensamento correspondia pois ao arquétipo mental de um religioso anti-reforma (e outra vez se constatará o seu anacronismo). Estou convencido de que, bem lá no fundo dos fundos, o que o moveu a tornar-se paladino entusiasta do ecumenismo cristão foi a ideia de reunificação cristã sob a instituição papal. Conjecturo que era o seu sonho, a sua grande utopia. Sab(er)ia que seria impossível realizá-la em vida. Mas quis abrir áleas para que um dia toda a cristandade voltasse a ter um único líder, um único chefe. Uma comunidade de novo atomizada no acatamento (de preferência dócil) da palavra apostólica do sucessor de Pedro.
A Cláudia titulou-o grande líder religioso do seu tempo. Talvez um pouco das nossas significativas diferenças enraíze também aí. Deste lado, a bem de uma certa honestidade intelectual, devo confessar uma desconfiança genética de todas as formas de autoridade apresadas na noção de líder. É mesmo uma palavra que procuro manter afastada do meu léxico. Há cerca de cem anos atrás Durkheim ensinava que o conformismo lógico precede o conformismo moral. Sou com efeito constitutivamente avesso à ideia da necessidade (moral) de hierarquia.
Isto já se alongou sem dúvida demasiado, mas não gostaria de terminar sem apensar um breve apontamento lateral quanto à ânsia de apressar a beatificação e, não creio delirar, ulterior canonização de Karol Woytila. Chega-me que se baseia na proliferação putativamente documentada de testemunhos de pessoas que garantem a pés juntos terem sido beneficiárias de (literalmente agraciadas por) milagres operados pela mão do Papa polaco. Vejo a promiscuidade das campanhas institucional (da própria Igreja Católica), política e mediática para crismar a gloria in excelsis do Santo. Tudo isto merece-me uma frase de três palavras apenas: é simplesmente obsceno.
Deixei muito por dizer. Há todavia uma coisa que não quero soterrar. Quero agradecer à Cláudia. Pelo diálogo aberto, pelo estímulo a melhor sistematizar o conjunto de ideias que aqui expus.

Comentários

Anónimo disse…
MUITO BEM, BICHO!
Cláudia [ACV] disse…
Ainda estou a digerir o teu post-ensaio; mas vai haver lugar a resposta, claro!
Afonso Bivar disse…
Sim, Cláudia, não esperava outra coisa. Quando vier a público, lerei com a máxima atenção. Não aguardes contudo posterior réplica minha, por muito magnético que seja o desafio. Para o tipo de construção séria e elaborada que esta "parada e resposta" compele, não terei tempo nas próximas semanas, ou talvez meses.

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